quarta-feira, 17 de junho de 2009

Síntese breve da crise da modernidade

Os sonhos da modernidade consistem na aposta na razão, progresso, ciência e utopia.
Acreditou-se que a emergência da modernidade levaria à formação de uma ordem social mais feliz e mais segura. Acreditava-se que a recem-emergente ordem da modernidade seria essencialmente pacifica, em contraste com o militarismo que havia caracterizado épocas precedentes. Ainda que Marx e Durkheim vissem a era moderna como uma era turbulenta, acreditavam, contudo, que as possibilidades benéficas abertas pela era moderna superavam suas características negativas. Marx via a luta de classes como fonte de dissidências fundamentais na ordem capitalista, mas vislumbrava ao mesmo tempo a emergência de um sistema social mais humano. Durkheim acreditava que a expansão ulterior do industrialismo estabelecia uma vida social harmoniosa e gratificante, integrada através de uma combinação da divisão do trabalho e do individualismo moral. Max Weber era o mais pessimista entre eles, vendo o mundo moderno como um mundo paradoxal onde o progresso material era obtido apenas à custa de uma expansao da burocracia que esmagava a criatividade e a autonomia individuais. Ainda assim, nem mesmo ele antecipou plenamente o quão extensivo viria a ser o lado mais sombrio da modernidade.
Segundo Lyotard, o pensamento e ação dos séculos 19 e 20 são governados pela idéia de emancipação da humanidade - elaborada no final do sec. 18 na filosofia das Luzes e na Revolução Francesa. Idéia de que o progresso das ciencias, das tecnicas, das artes, das liberdades politicas emancipará a humanidade inteira da ignorância, pobreza, despotismo, formando cidadãos esclarecidos, donos do seu próprio destino. Idéia básica no liberalismo político, liberalismo econômico, marxismo, anarquismo, socialismo. O horizonte do progresso é a promessa de liberdade. Esta utopia de igualdade, produzida pela razão, governada pela técnica e desfrutada pela arte não se realizou. E hoje põe-se em causa a herança do Iluminismo.
Depois da experiencia de duas guerras mundiais, depois de Auschwitz, depois de Hiroshima, vivendo num mundo ameacado pela aniquilação atômica, pela ressurreição dos velhos fantasmas políticos e religiosos e pela degradação dos ecossistemas, o homem contemporâneo está cansado da modernidade. Segundo Rouanet, [Sergio Paulo Rouanet, As razoes do Iluminismo, São Paulo, Companhia das Letras, 1987-Ensaio: A verdade e a ilusao do pós-moderno], as vanguardas do alto modernismo perderam sua capacidade de escandalizar e se transformaram em establishment; os grandes mitos oitocentistas do progresso e da emancipação da humanidade pela ciência ou pela revolução são hoje considerados anacrônicos; a razão, instrumento com que o Iluminismo queria combater as trevas da superstição e do obscurantismo, é denunciada como o principal agente da dominação. Há uma consciência de que a economia e a sociedade são regidas por novos imperativos, por uma tecnociencia computadorizada que invade nosso espaco pessoal e substitui o livro pelo micro, e ninguém sabe ao certo se tudo isso anuncia uma nova Idade Média ou uma Renascença. O totalitarismo desempenhou um papel importante no desencantamento do mundo moderno. Acreditava-se que o uso arbitrário do poder político pertencia primariamente ao passado; o “despotismo” parecia ser principalmente característico de estados pré-modernos. Na esteira da ascensão do fascismo, do Holocausto, do stalinismo e de outros episódios da história do seculo XX, pode-se ver que a possibilidade de totalitarismos é contida dentro dos parâmetros da modernidade ao invés de ser por eles excluída. A perda da crença no progresso é um dos fatores que fundamentam a dissolução de “narrativas” da história. Ou seja, a conclusao de que a história “vai a lugar nenhum”. O “progresso” não cumpriu o que dele se desejava, gerando utopias negativas e medos do futuro. Segundo Lyotard, foi o progresso - o desenvolvimento tecnocientífico, artístico, econômico e político - que tornou possivel as guerras, os totalitarismos, o afastamento crescente entre a riqueza do Sul e a do Norte, o desmeprego e o isolamento das vanguardas artisticas.
Hoje é impossivel legitimar o desenvolvimento através da promessa de emancipação da humanidade inteira. A promessa não foi cumprida porque é o proprio desenvolvimento que impede de a cumprir. A miséria do Terceiro Mundo não é devido a falta de desenvolvimento, mas ao desenvolvimento. Não há nada que legitime o desenvolvimento.
A fé iluminista na ciência é denunciada como uma ingenuidade periogosa, que estimulou a destrutividade humana e criou novas formas de dominação, em vez de promover a felicidade universal. A crença no progresso expôs o homem a todas as regressões. Seu individualismo estimulou o advento do sujeito egoísta, preocupado unicamente com o ganho e a acumulação. A crença na mudanca das relações sociais como forma de implantar o paraíso na terra levou a uma utopia concentracionária, e resultou na criação de todos os Gulags. Sua cruzada desmistificadora solapou as bases de todos os valores, deixando o homem solitário, sob um ceu deserto, num mundo privado de sentido.
Na resenha “Teorias do Fascismo Alemao”(1930), Walter Benjamin faz algumas considerações de interesse geral sobre o papel da técnica no mundo moderno. A aceleração dos recursos técnicos - longe de promover um uso racional emancipador, no sentido de uma ordem econômica mais justa, mais social - está efetivamente a serviço de forças míticas destrutivas. O crítico, que visa a sociedade burguesa contemporanea, observa uma “enorme discrepância entre gigantescos meios tecnológicos e um mínimo conhecimento moral desses meios”. A técnica, ao invés de ser “uma chave para a felicidade”, ajudando a dominar as forças sociais elementares, é na verdade dominada por elas, tornando-se “um fetiche para a destruição”. Nessas considerações pesam a experiência da Primeira Guerra Mundial e o temor diante de outra catástrofe, ainda maior. A “separação entre a dimensão técnica e a assim chamada dimensão espiritual” é propícia a reforçar o temor. “Toda guerra futura”, adverte Benjamin, “é ao mesmo tempo uma insurreição da técnica que quer liberar-se do jugo da escravidão”.
Michel Foucault, considerado um dos papas do pós-modernismo, pregou o desprezo pela objetividade do saber e da ciência. O saber não é objetivo, porque sua validade é comprometida por uma gênese extra-científica e funciona a serviço de fins extra-cientificos. Para Lyotard o projeto da modernidade foi destruido. Auschwitz é um dos seus momentos de destruição - crime que inaugura a pós-modernidade. A vitória da tecnociência é uma outra maneira de destruir tal projeto, a medida que não deu mais liberdade ou riqueza ao homem. Tem-se a deslegitimação do projeto da modernidade. Tais narrativas de legitimação - progresso, razao, ciência - já não são mais dignas de credibilidade.
A tecnociência realiza o projeto moderno de o homem tornar-se dono e senhor da natureza. Mas ele próprio e seu mundo fazem parte da natureza. Seu cérebro, seu sistema nervoso, seu código genético, seu computador cortical, etc., isto faz com que o homem se desestabilize. Porque a sua ciência, a sua tecnologia faz parte também da natureza. Nestas condicoes de imbricação do sujeito e do objecto, como pode persistir o ideal de dominio ?
Lyotard é um autor mais interessado em mostrar que estamos no limiar de uma nova era e enfoca as questões de filosofia e epistemologia. Foi o autor responsavel pela popularização do termo pos-modernidade. Para ele, a pós-modernidade se refere a um deslocamento das tentativas de fundamentar a epistemologia, e da fé no progresso planejado humanamente. A condição da pós-modernidade é caracterizada por uma evaporação da "grand narrative" - o “enredo” dominante por meio do qual somos inseridos na história como seres tendo um passado definitivo e um futuro predizível. A perspectiva pós-moderna vê uma pluralidade de reivindicações heterogêneas de conhecimento, na qual a ciência não tem um lugar privilegiado. No passado, a modernidade a ciência recorreu a certos “enredos” para legitimar-se como saber. Tais enredos foram proporcionados pelo filosofo moderno, que privilegiou a problemática do conhecimento, fazendo da filosofia um metadiscurso de legitimação da própria ciência. Os “enredos” são: a dialética do espírito, emancipação do sujeito, crescimento da riqueza, etc. Com a crise da ciência, este quadro metafisico está invalidado e tem-se a crise de conceitos caros ao pensamento moderno, tais como razao, sujeito, totalidade, verdade, progresso. O pós-moderno caracteriza-se pela incredulidade perante o metadiscurso filosófico-metafísico, com suas pretensões atemporais e universalizantes. Segundo Lyotard, a ciência, para o filósofo moderno, herdeiro do Iluminismo, era vista como algo auto-referente, ou seja existia e se renovava incessantemente com base em si mesma. Era vista como uma atividade nobre, desinteressada, sem finalidade pré-estabelecida, senho que sua função primordial era romper com o mundo das trevas, mundo do senso comum e das crenças tradicionais, contribuindo assim para o desenvolvimento moral e espiritual da nação. No entanto, o cenário pós-moderno, com sua vocação informática e informacional, investe sobre esta concepção do saber cientifico. Descobriu-se que a fonte de todas as fontes chama-se informação e que a ciência nada mais é do que um certo modo de organizar, estocar e distribuir certas informações. A atividade cientifica deixou assim de ser aquela praxis que, segundo a avaliação humanistico-liberal, especulativa, investia a formação do espírito, do sujeito razoável, da pessoa humana, e até mesmo da humanidade. Com ela, o que vem se impondo é a concepção da ciência como tecnologia intelecutal, ou seja, como valor de troca, e por isso mesmo desvinculada do produtor (cientista) e do consumidor. Uma prática submetida ao capital e ao Estado, atuando como essa particular mercadoria chamada força de produção.
A crítica à razao formulada já por Nietzsche que evoca como o Outro da razao, o impulso dionisiaco, considerado um valor transcendente, de validade mais alta. A partir de uma certa leitura de Foucault, Deleuze e Lyotard, e sob a influência de retomada de Nieztsche, que vê relações de poder em toda parte, o irracionalismo considera a razão o principal agente de repressão, e não o órgão da liberdade, como afirmava a velha esquerda. Michel Foucault é autor de uma obra de demolição da razão ocidental, considerada como um simples alter ego do poder. Ou seja, a razão como máscara para o poder, como legitimação de processos de dominação. Mostra a funcionalização do saber a serviço do poder. Foucault é acusado de trair a herança iluminista e demitir-se da modernidade. Por um lado, ele desmascara a razão, considerando-a uma simples antena utilizada pelo poder para esquadrinhar, observar, normalizar; e por outro lado, desmoraliza os ideais humanitários do Iluminismo, vendo neles meras tecnologias de controle. Para Foucault, existem dois Kant: há o Kant que ele denuncia em As Palavras e as Coisas - inaugurador da filosofia do sujeito, responsável pela duplicidade entre o Eu empírico e o Eu transcendental, que envolve o saber moderno numa série de aporias insolúveis, as quais as ciências humanas tentam escapar pela acumulação incessante de novos conhecimentos, impulsionadas por uma “vontade de saber”, cuja principal função é encobrir o caráter ilusório destes conhecimentos. Este Kant está na origem de uma certa modernidade - epistêmica, espúria, repressiva, cujas estruturas São desmascaradas pela arqueogenealogia. E há um novo Kant, o fundador de uma crítica do presente. Este Kant está na origem de outra modernidade, cujo conteudo programático foi formulado pelo mesmo Kant, em seu ensaio sobre o Iluminismo: libertar o homem de todas as tutelas. Foucault, para Habermans, é contra-iluuminista e pós-moderno, considerado um representante do irracionalismo contemporaneo.
De acordo com Rouanet, a crise da razão conduz a necessidade de revisão do conceito clássico de razão. Depois de Marx e Freud, não podemos mais aceitar a idéia de uma razão soberana, livre de condicionamentos materiais e psíquicos. Depois de Weber, não ha como ignorar a diferença entre uma razão substantiva, capaz de pensar fins e valores, e uma razão instrumental, cuja competência se esgota no ajustamento de meios a fins. Depois de Adorno, não é possivel escamotear o lado repressivo da razão, a serviço de uma astúcia imemorial, de um projeto imemorial de dominação da natureza e sobre o homens. Depois de Foucault, não e lícito fechar os olhos ao entrelaçamento do saber e do poder.

Um comentário:

  1. Para mim, este é um dos melhores textos deste blog até então. Parabéns professora Adriana.

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