sexta-feira, 26 de junho de 2009

Sobre Michael Jackson

Há muitas formas de se abordar a morte de M. Jackson. Poderia falar da cobertura maciça da mídia, a começar pela CNN, que acompanho em tempo real. Poderia refletir sobre o que é uma sociedade da informação, em que todos partilham ao mesmo tempo de um luto global. Esquecemos, por ora, a história da cultura, e falemos do drama humano. Pois é esta dimensão que me deixa aturdida, escancarando para todos nós a complexidade insondável que é a vida humana. Pequenas e grandes tragédias pessoais, histórias de vida marcadas pela dor, a terrível solidão da fama e do sucesso, a mesquinharia da glória, a profundidade dos abismos em que muitos de nós são lançados. Haverá algo mais fascinante do que a experiência humana, com suas infinitas possibilidades ? À medida que vamos trilhando o nosso caminho, apercebemo-nos do quão espinhoso e árduo ele é: em cada um que sucumbe, há um universo de sofrimento, alegria, prazer e provação, que nós mal conseguimos divisar. O drama humano se desenrola de forma diferente para cada um de nós - e, como historiadora, não posso deixar de pensar nesta dimensão da história que ainda permanece oculta. O homem diante da vida - haveria repertório mais desafiador ?

Sobre centro e periferia

Gostaria aqui de continuar a discussão iniciada ontem em sala de aula sobre centro e periferia. A tese de Jack P. Greene sobre a negociação entre as elites locais e o poder central não significa necessariamente a pulverização do binômio periferia vs. centro. O fato de haver negociação não elimina o conflito e o caráter impositivo do centro. Toda negociação ocorre dentro de uma margem de possibilidade, dada pelo centro. Vejam um exemplo: aqui em Minas negociou-se as formas de pagamento do quinto. Mas a imposição do quinto estava fora de discussão: devia ser pago e ponto final. Na verdade, a ênfase demasiada na negociação acaba por suprimir não só a dimensão do conflito, mas a atuação do próprio Estado português, que deixa de ser o centro formulador da política colonial. O Grupo do Rio levou a tese de Greene às últimas consequencias, de tal modo que seus adeptos só vêem negociação (e portanto resolução de conflito) em todas as esferas. É preciso lembrar, mais uma vez, que a negociação ocorre dentro de relações de poder, dadas previamente: o que se negocia, como se negocia e até onde se negocia são fixados por aquele que tem mais poder - no caso, o Estado. A dissolução do poder central dilui por completo a própria lógica da colonização, concedendo à periferia um poder que ela jamais teve.
Esta é a polêmica entre o Grupo do Rio e a USP. Enquanto os primeiros rompem com o binômio centro vs. periferia, a USP insiste na centralidade do poder metropolitano.
Eu não acho que a saída seja o modelo do Antigo Sistema Colonial. Havia um Estado português que formulava e implantava políticas para o mundo colonial, baseadas no princípio da exploração econômica. Concordo plenamente com Greene sobre a importância da negociação, mas não posso aceitar, como quer o Grupo do Rio, a diluição das instâncias do centro e da periferia. Como venho dizendo, vivemos uma fase conservadora da historiografia brasileira: jogar no lixo as dimensões políticas inscritas na relação centro e periferia é, mais uma vez, suprimir o conflito, ofuscar as relações de dominação e negar as tensões entre centro e periferia. Em fim, centro e periferia são categorias que, ainda que relativizadas, não podem ser jogadas na lata do lixo.

quinta-feira, 25 de junho de 2009

PDF] Connected Histories: Notes towards a Reconfiguration of Early ...

Pessoal
Segue o link para o texto do Sanjay.
Abraços a todos

PDF] Connected Histories: Notes towards a Reconfiguration of Early ...
Formato do arquivo: PDF/Adobe Acrobat - Ver em HTML
Connected Histories: Notes towards a. Reconiguration of Ear& Modern Eurasia. ' SANJAY SUBRAHMANYAM. Ecole des Hautes Etudes en Sciences Sociales, Paris ...
www2.warwick.ac.uk/.../subrahmanyam_connected_histories.pdf

Absolutismo vs. negociação

Já vai longe o tempo em que os historiadores acreditavam num poder absolutista, imposto de cima para baixo, com mão de ferro. A revisão começou com Michel Foucault e, para o caso português, culminou na obra de Antonio Hespanha. Governabilidade significa, para os autores contemporâneos, operar negociação entre centro e periferia, numa simbiose de interesses capaz de dar sustentação ao poder central. Com grande influência sobre o centro, as periferias, na análise de Greene, impuseram seus interesses, participando ativamente do poder e dos seus benefícios, sob a forma de direitos, privilégios e isenções. Segundo Greene, havia um delicado equilíbrio entre os interesses das elites locais e os interesses do poder central. Quando este equilibrio foi rompido, o sistema entrou em colapso.
Em lugar do absolutismo, temos então a relativa autonomia das elites locais, encasteladas nos nichos de poder existentes na periferia.
Será que alguém discorda ?

http://www.rj.anpuh.org/Anais/2004/Simposios%20Tematicos/Rodrigo%20Ceballos.doc

Este meio original de lidar com as relações entre “centro” e “localidades” pode ser complementada com o estudo de Jack Greene sobre as colônias americanas. Para ele a autoridade não fluiu do centro para as periferias, mas foi construída por uma série de negociações, de barganhas promovidas tanto de um lado como do outro. Estas práticas envolveram o exercício da força de um centro, mas que também permitiram o uso da autoridade nas margens do Império. Até mesmo no Estado espanhol – capaz de financiar sua defesa naval, pagar tropas, manter uma crescente burocracia formada por oficias reais e abolir privilégios locais – a estrutura da autoridade foi constantemente negociada entre a Coroa e seus súditos hispano-americanos. A força centrífuga nas margens não foi depreciável e ocorreu principalmente através de uma “criolização” dos cargos régios e o direito dos colonos se sentirem consultados antes da promulgação das ordens régias. Nesta delicada relação, a Coroa espanhola foi obrigada a agir com o mesmo cuidado que mantinha com seus nobres espanhóis na península.
Greene nos permite repensar o aparente caos das periferias através de seu próprio dinamismo interno e suas relações com o centro, implodindo a concepção de que a autoridade parte do centro e se alastra, bem ou mal, pelos seus pólos formando um consenso comum. Jack Greene nos mostra como as autoridades periféricas não foram absorvidas e tomadas pelo Estado, ou que algumas vezes nem mesmo foram produzidas pelo Estado e confiscadas por ele. Para este historiador, “scholars have long recognized that Spanish Mexico and Spanish Peru, places generating enormous wealth, filled with large populations, and characterized by complex economic, political, and cultural forms, functioned as core areas in Spanish Americas”. Resta aos interessados pelo tema fazerem melhor uso dos conceitos de “centro-periferia” ao analisar a organização interna do Império nas Américas.
Defender a existência das periferias como core areas, capazes de exercer ações mantenedoras de um Império junto ao seu centro, significa considerar a autoridade como algo que se exerce e funciona positivamente dentro de uma rede social. Pensar na dicotomia “centro x periferias” – como aquele que possui um “poder” e os que não têm – é romper com a própria idéia de relação. Assim, as estruturas de autoridade são criadas a partir de um processo de negociação entre as partes envolvidas. Os “poderes” envolvidos neste processo raramente têm o mesmo peso, mas através de uma combinação de resistência e aquiescência até mesmo o mais fraco desta disputa obtém algum benefício . Neste sentido, Greene se apropria do termo authority para explicar uma disputa que implica legitimação, justiça e direito, produto da negociação e sanção entre as partes envolvidas que promoveram a própria malha tecedora do Império.
A existência da multiplicidade de redes de poder entre as Américas ligadas às suas metrópoles demonstra que a colonização não partiu unicamente de diretrizes metropolitanas, mas perpassou as próprias práticas locais. Da mesma forma, mais do que um ato ilícito as redes de interesses estiradas pelo Vice-Reino do Peru em direção ao Rio da Prata foi parte de uma ação colonizadora promovida, em grande medida, pela Coroa através de seus próprios funcionários. Aproveitando-se desta rede, ou mesmo fazendo parte dela, a metrópole utilizava os próprios recursos produzidos pela extralegalidade para enviar tropas para o Chile, manter uma comunicação regular, além de arrecadar importantes somas em prata ou bens materiais.
Fonte:AS (IN)FORMALIDADES DO IMPÉRIO ESPANHOL NO SÉCULO XVII
os portugueses em Buenos Aires e as redes de poder, Rodrigo Ceballos
(doutorando UFF)

Pulverização do poder em Greene

Segundo Greene, a infiltração nas agencias da administração colonial pelos membros das elites coloniais e a naturalização dos oficiais a partir do centro reforçaram a influencia das periferias sobre o governo imperial. Havia um delicado equilíbrio entre os interesses locais e os interesses metropolitanos, necessário para a sobrevivência do sistema.

Elites locais vs. poder central

Para Greene, os Estados não dispunham de recursos administrativos, econômicos e militares para recorrer a formas impositivas de poder sobre as colônias. Por meio de direitos e privilégios, eles estenderam os seus domínios sobre o mundo colonial, bargando e negociando com as elites locais. Tratavam-se de monarquias compósitas, baseadas em acordos entre as elites, num processo de associação e negociação. Rejeitando a tese de um poder centralizado e abandonando os modelos coercitivos, propõe a idéia da natureza compósita que envolvia a formação destes estados, do que resultava o estabelecimento de enclaves privados que frequentemente precediam os esforços metropolitanos para a imposição de um controle central. Para obter a cooperação das elites locais, os agentes oficiais tinham que negociar as autoridades com elas.

Autoridades negociadas, segundo Jack P. Greene

As discussões acerca da centralização dos Estados europeus, contudo, vêm ganhando novos contornos. Se antes se advogava em favor de um poder absoluto dos reis, as novas abordagens trabalham no sentido de colocar tal poder em perspectiva. Esse é o caso de Jack P. Greene. Buscando pensar o meio pelo qual o poder monárquico se sustentava, tal autor relativizou a idéia de absolutismo ao propor a noção de “autoridade negociada”. Conforme tal noção, diante da falta de recursos financeiros, administrativos e militares dos Estados Modernos para implantarem amplamente meios coercitivos de domínio sobre suas colônias, o ônus financeiro de ocupação e defesa das terras coloniais restava a cargo da elite local. Em troca, esses indivíduos recebiam amplas vantagens econômicas e benefícios, estando, então, em condições tanto de se opor, como de explorar o Estado visando seus próprios fins. Assim, a autoridade não adivinha “do centro para a periferia, mas era construída no curso de uma série de negociações e de barganhas recíprocas”. Sendo tal processo capaz de concentrar poder em instituições do Estado, conferiu, da mesma forma, certo grau de poder nas mãos da elite local. Nesse sentido, novos elementos passaram a ser considerados nos estudos acerca do processo de centralização do Estado: os vassalos e as instituições em que atuavam, que de meros executoras dos interesses régios, passaram a ser consideradas enquanto instâncias com as quais o poder monárquico precisava negociar.

Nesse sentido, vale destacar o estudo empreendido por Antonio Manuel Hespanha. Pretendendo discutir o tema da centralização monárquica no reino português, tal autor, a partir da análise das “instituições e práticas administrativas”, demonstrou – “no plano do direito estabelecido e praticado” – de que maneira as instituições locais conseguiram manter certo grau de autonomia em relação ao poder central. Na base do argumento encontram-se dois paradigmas: o jurisdicionalista e o corporativista. Para além disso, o autor sublinhou outros fatores ligados à prática administrativa, os quais se constituíam em empecilhos à centralização do poder. Dentre esses fatores, a escassez de meios financeiros e humanos. No que concerne à rede de funcionários régios, Hespanha assinalou que não raro tais funcionários se viam envolvidos em redes de relações locais. De mais a mais, o autor atentou para a autonomia dos conselhos locais na escolha de seus integrantes e para a faculdade desses órgãos de levarem a cabo suas despesas às custas das próprias receitas.

Ainda conforme Hespanha, a coroa portuguesa detinha um amplo e disperso domínio territorial em várias partes do globo. Em função disso, era difícil a implantação de um modelo político administrativo com base em “uma rede de funcionários dotados de competências bem estabelecidas, visando sobretudo uma administração pacífica”. Desse modo, a constituição do reino português caracterizou-se pela transladação de uma série de mecanismos político-administrativos para seus mais recônditos confins. Dentre esses mecanismos, as câmaras possuíam um destacado papel nos quadros da governabilidade do reino português, as quais, de modo geral, tinham sua importância assinalada pela capacidade em transplantar e adaptar os modos da metrópole, bem como garantir uma maior uniformidade na gerência dos interesses régios. A eficiência da câmara nesse sentido seria garantida em decorrência da composição social desse órgão, que era, em grande medida, levado à frente por integrantes da elite local.
http://www.historiaehistoria.com.br/materia.cfm?tb=alunos&id=138

segunda-feira, 22 de junho de 2009

quinta-feira, 18 de junho de 2009

Provocações ao historiador

1.) É verdade que nós, historiadores, reconhecemos que pode haver versões diferentes, vistas da perspectiva de diferentes lugares, e que todas são igualmente válidas, de modo que não há padrões de verdade, ou plausibilidade histórica com os quais possamos aferir uma versão de história ou experiência social em comparação com outras ? Em resumo, acreditamos nós que todas as versões e significados são igualmente válidos ?
2.) É verdade que, ao refutarmos a noção de natureza humana, desconstruindo o próprio homem, estamos fadados a desconstruir também a idéia de igualdade (que se baseia na existência de uma essencia humana), uma vez que não pode haver igualdade entre dessemelhantes ?
3.) É verdade que o elogio aferrado da diferença, que nos impede de admitir qualquer padrão contra o qual um indivíduo possa ser julgado melhor do que o outro, não pode fornecer quaisquer padrões que nos obriguem a respeitar a diferença dos outros ? Isto não pode nos conduzir à indiferença diante do outro ?
4.) Como defender o respeito por diferenças sem apelar para alguns princípios universalistas, totalizantes, de igualdade ou justiça social ?
5.) O anti-humanismo impede necessariamente a busca da emancipação geral da humanidade ?

As críticas à modernidade

Wright Mills, um dos críticos da modernidade, escreveu que muitos dos principais objetivos do Iluminismo foram realizados: a racionalização da organização social e política, o progresso científico e tecnológico, a disseminação da educação universal nas sociedades ocidentais avançadas, etc. Mas esses progressos pouco contribuíram para aumentar a "racionalidade essencial" dos seres humanos. Quando mais não seja, ao invés de expandir a liberdade humana, a racionalização, a burocracia e a tecnologia moderna haviam-na restringido. Essas condições haviam também dado origem a muitos e inesperados males. A assustadora consequencia desta falta de correspondencia entre racionalidade e liberdade fora o advento de individuos alienados, que se adaptavam às condições sobre as quais não exerciam qualquer controle, indivíduos os quais não se poderia mais supor que tivessem ânsia de liberdade ou vontade de raciocinar.

Guerra à universalidade

O pós-modernismo nega toda ordem de valores universais, como verdade, razão, realidade e ciência. Afirma que não há verdade, nem mesmo realidade e que aquilo que a ciência chama de verdade não passa do resquício do impulso imperialista do Ocidente, tentando impor para o resto do mundo suas próprias noções de verdade e realidade. A ciência não passaria, nesta perspectiva, de uma construção social e ideológica, uma vez que todas as crenças são igualmente justificadas pelo consenso da comunidade, que em si mesmo baseia-se no poder social, na retórica e no costume. Não haveria assim verdade objetiva sobre o mundo real, à qual o conhecimento cientificamente justificado poderia aspirar alcançar: toda "verdade" sobre a "realidade" seria literalmente construída com opções entre interpretações, igualmente justificáveis, feitas por um "coletivo mental".
Rejeitam portanto a prova empírica fornecida pelo mundo real, e que poderia ser verificada independentemente de pressupostos teóricos e sociais prévios. Uma vez que os valores contextuais se transformam nos valores constitutivos da ciência, segue-se que diferentes grupos socioculturais sustentariam verdades diferentes sobre o mundo, sendo todas elas igualmente válidas. O pós-modernismo implica uma rejeição categórica do conhecimento totalizante e de valores universalistas, incluindo as concepções ocidentais de racionalidade, igualdade e as concepções sobre a emancipação humana geral. Em vez disso, eles enfatizam a diferença: identidades particulares, tais como sexo, raça, etnia, sexualidade; suas lutas distintas e particulares, os seus conhecimentos particulares.
O ponto de partida dos pós-modernistas é a incapacidade da razão humana de compreender os mecanismos causais do mundo físico. Para os pós-modernistas, a ciência moderna jamais dará as respostas para os mistérios do mundo. Aquilo que o Iluminismo defendeu com tanto esforço, ou seja, a racionalidade científica como meio para a mudança social e o progresso, é jogado na lata do lixo pelo pós-modernismo. Para os pós-modernos, não se trata de negar a realidade externa, com a qual os cientistas interagem em seus experimentos em laborátorios; negam apenas que a realidade externa determine, em última instância, a verdade ou falsidade do conhecimento científico. Ou seja, o mundo real existe, mas ele é independente do que pensamos dele.
Do ponto de vista político, cabe indagar: poderão as teorias idealistas, anti-racionalistas e anti-realistas do conhecimento pós-moderno promover seus objetivos políticos, que presumivelmente incluem plena autonomia do indivíduo e da sociedade, sem preconceito ou injustiça ? Não será mais provável que, ao relativizar todo conhecimento aos discursos culturais e arranjos sociais existentes, eles estejam se privando de qualquer base de onde possam avaliar criticamente as tradições culturais existentes que são hostis a esses ideais políticos ?
Meera Nanda acusa os pós-modernistas de confundir tolerancia e relativismo cultural: segundo ela, uma coisa é aceitar um "relativismo cultural" que respeita a variedade da cultura humana; outra, inteiramente diferente, é adotar um relativismo que transforma esses valores culturais variados no único ou principal padrão de verdade, de modo que a verdade passa a ser simplesmente o que se ajusta a um dado sistema de crenças, ao invés de aquilo que descreve fielmente o mundo que existe independentemente de nossas crenças. De acordo com o relativismo pós-moderno, uma teoria correspondente de verdade, que inevitavelmente faz afirmações universalistas, é violenta e responsável pela intolerância, o colonialismo e mesmo pelo totalitarismo. A única solução que aceitam é reconhecer a influência do contexto e a parcialidade de todo o conhecimento, incluindo o da ciência moderna - o que permite que mil ciências floresçam.

Grandes narrativas do Iluminismo

O Iluminismo trouxe o apelo explícito a alguma narrativa grandiosa, por meio da qual se concebia a história do passado e se projetava um futuro. Podia ser a dialética do Espírito, a hermenêutica do significado, a emancipação do sujeito racional ou trabalhador, a criação de riquezas, etc. Com o pós-modernismo, temos a dissolução de todas as narrativas, considerando-as todas suspeitas e comprometidas com o poder. Em termos de historiografia, o resultado é que se os historiadores do passado eram inspirados por um compromisso político ou filosófico, sem que isso solapasse a autoridade de seu texto, hoje os pós-modernistas vêem toda narrativa como o conteúdo discursivo do presente sobre o passado. Todas as "histórias grandiosas", tais como as idéias ocidentais de progresso, incluindo as teorias marxistas de história, são rejeitadas, sob a acusação de serem reducionistas, pois que privilegiariam um aspecto particular da realidade (modo de produção, classe, ou qualquer outra coisa como determinante histórico), redundando numa visão monolítica do mundo.
Segundo Ellen M. Wood, as implicações políticas das posições pós-modernistas são claras: o self humano é tão fluido e fragmentado e nossas identidades, tão variáveis, incertas e frágeis, que não pode haver base para solidariedade e ação coletiva fundamentadas em uma identidade social comum, em uma experiência comum, em interesses comuns. Insistem na impossibilidade de qualquer política libertadora baseada em algum tipo de conhecimento ou visão totalizantes. Até mesmo uma política anticapitalista é por demais totalizante ou universalista...

Ideologia e mentalidade

Para Vovelle, a história das mentalidades pode ser também uma história das ideologias, quando privilegia o estudo das mediações e da relação dialética entre, de um lado, as condições objetivas da vida dos homens e, de outro, a maneira como eles a narram e mesmo como a vivem.
A história das mentalidades defendida por Vovelle não pode perder de vista as mediações complexas entre a vida real dos homens e as representações que os homens produzem para si.
Em suma, trata-se de manter unidas as duas pontas da cadeia, desde o social ao metal. É preciso romper com a autonomia do mental.

quarta-feira, 17 de junho de 2009

O fim do humanismo em Foucault, segundo Demerval Saviani

O reconhecimento do empenho dos historiadores da educação não deve obscurecer, porém, as reais dificuldades teóricas. Dir-se-ia que, até mesmo em razão do mencionado empenho em se colocar em dia com os avanços no campo da historiografia, detecta-se uma tendência em aderir muito rapidamente às ondas supostamente inovadoras que aí se manifestam. Apenas à guisa de exemplo, lembro a influência de Foucault, transformado praticamente no guru da historiografia dita avançada. O problema é que a maioria dos historiadores, de um modo geral, e historiadores da educação, de modo especial, tem pouco domínio sobre o universo epistemológico em que se move Foucault e, menos ainda, sobre a matriz filosófica de que é tributário, o que obrigaria a remontar ao pensamento de Nietzsche. Talvez esteja aí a razão da grande receptividade conferida a Foucault nas pesquisas de História da Educação, acolhido como o arauto da defesa da subjetividade humana. Logo ele para quem o
“o homem é uma invenção recente” cujo fim já se anuncia, como se evidencia nessas palavras finais do livro:
“Se estas disposições viessem a desaparecer tal como apareceram, se por algum acontecimento de que podemos, quando muito, pressentir a possibilidade, mas de que não conhecemos de momento ainda nem a forma nem a promessa, se desvanecessem, como sucedeu na viragem do século XVII ao solo do pensamento clássico – então pode-se apostar que o homem se desvaneceria, como à beira do mar um rosto de areia” (FOUCAULT, 1968. p. 502).
Para Foucault o pensamento clássico, isto é, aquele que se constituiu nos séculos XVII e XVIII, entrando em crise no século XIX, tinha por base um “campo epistemológico” gerador das categorias “sujeito”, “consciência” as quais não passam de ficções desse mesmo campo epistemológico. Isto porque, como esclarece Eduardo Lourenço na introdução à tradução portuguesa de “As palavras e as coisas”, a noção de “campo epistemológico” traduz uma intenção implícita que estrutura uma área cultural permanecendo, porém, invisível àqueles que a utilizam, melhor dizendo, àqueles que ela utiliza. Eis porque Eduardo Lourenço dá este significativo título à sua introdução: “Foucault ou o fim do humanismo”.
Essa idéia está explicitamente formulada na obra, como se pode ilustrar, por exemplo, no tópico denominado “o sono antropológico” onde, após referir-se a Nietzsche que teria reencontrado o ponto em que a morte de Deus é sinônimo do desaparecimento do homem, sendo a promessa do super-homem a iminência da morte do homem, afirma Foucault:
“A todos os que pretendem ainda falar do homem, do seu reino ou da sua libertação, a todos os que formulam ainda questões sobre o que é o homem na sua essência, a todos os que querem partir dele para ter acesso à verdade, a todos aqueles, em contrapartida, que reconduzem todo o conhecimento às verdades do próprio homem, a todos os que não pretendem mitologizar sem desmistificar, que não querem pensar sem pensar logo que é o homem que pensa, a todas essas formas de reflexão canhestras e torcidas, não se pode senão opor um riso filosófico – quer dizer, em certa medida, silencioso” (1968, pp. 445-6).
É nesse contexto que Foucault se revela assumidamente estruturalista o que se manifesta mesmo na introdução à “A Arqueologia do Saber” quando, ao tratar dos problemas do campo metodológico da história, afirma: “a estes problemas pode-se dar, se se quiser, a sigla do estruturalismo” (1972, p. 19). É verdade que, nessa mesma introdução ele irá, mais adiante (p. 25), fazer uma autocrítica de suas obras anteriores, entre elas, “As palavras e as coisas”. Não, porém, para abandonar aquela rota, mas para assumi-la de forma mais conseqüente e radical. Com efeito, ao se referir à “Histoire de la Folie” ele irá lamentar o quanto permaneceu aí próximo de “admitir um sujeito anônimo e geral da história”. E se entristece por não ter sido capaz de evitar, em “Les Mots et les Choses”, que “a ausência de balizagem metodológica permitisse que se acreditasse em análises em termos de totalidade cultural” (1972, p. 25). Em outros termos, para ele essas insuficiências decorreriam da força de atração ainda exercida pelo “campo epistemológico” clássico que o teria levado a se aproximar da idéia de um sujeito geral da história, num caso, e da categoria analítica da totalidade cultural, no outro.
Parece, pois, no mínimo estranho que esse autor seja tomado, com alvoroço e entusiasmo por jovens investigadores da história da educação, como aquele que teria vindo a resgatar a liberdade e autonomia dos sujeitos tanto no âmbito da ação histórica como da pesquisa histórica. Trata-se, salvo melhor entendimento, de um tema que está a exigir um estudo sistemático, cuidadoso e aprofundado.

Fonte
http://www.histedbr.fae.unicamp.br/acer_histedbr/seminario/seminario4/trabalhos/sessab01.rtf

O paradoxo do marxismo

"Com efeito, embora o marxismo participe com as demais correntes do século XIX do entendimento de que a razão humana é capaz de conhecer a realidade objetivamente, a obra de Marx se formulou em contraposição tanto ao iluminismo quanto ao positivismo, criticando-os de forma contundente."
Fonte: http://www.histedbr.fae.unicamp.br/acer_histedbr/seminario/seminario4/trabalhos/sessab01.rtf

Críticas de Ciro Flamarion Cardoso ao paradigma pós-moderno

Quanto ao “paradigma pós-moderno”, após apresentar as suas principais características, Ciro Flamarion Cardoso faz o inventário das principais críticas que, a seu ver, devem ser dirigidas a essa tendência:
1) O anti-racionalismo típico dessa corrente se acompanha, por vezes, de certo desleixo teórico e metodológico e, o que é especialmente grave no caso de historiadores, até mesmo no que diz respeito à crítica das fontes.
2) Os pós-modernos costumam ser mais apodícticos e retóricos do que argumentativos, lançando mão de afirmações apresentadas como se fossem axiomáticas e auto-evidentes, não sendo então demonstradas – como se bastasse dizer “eu acho”, “eu quero”, “minha posição é...”, não se preocupando, também, com a refutação detalhada e rigorosa das posições contrárias.
3) Há paradoxos e aporias insolúveis em muitas das posições pós-modernas. Exemplos: a) na defesa da “desconstrução”, sendo os pontos de partida a negação de um sujeito agente e de qualquer relação referencial entre discurso e realidade, por que o discurso da desconstrução seria mais aceitável, teria maior autoridade do que qualquer outro dos discursos e escritas, no jogo dos significantes que se multiplicam até o infinito? b) e como conciliar a negação do sujeito e do homem com um método hermenêutico relativista que, na prática, descamba para o subjetivismo?
4) Poder-se-ia invocar também, contra muitos membros da corrente atual, o fato de caírem no velho “façam o que eu digo, não o que eu faço”. A denúncia da ciência e do racionalismo como terrorismos a serviço do poder está longe de significar que os pós-modernos, uma vez encastelados em posição de poder, sejam mais tolerantes na prática, devido ao relativismo que em tese pregam, do que aqueles que criticam e combatem.

Fonte: http://www.histedbr.fae.unicamp.br/acer_histedbr/seminario/seminario4/trabalhos/sessab01.rtf

O que é um historiador pós-moderno ?

1.) Relativismo cultural, que postula que "verdade não existe ou é relativa." Isto é: o conhecimento da realidade é impossível ao historiador.
2.) Crença, decorrente do item anterior, de que a História se resume a narrativa,
a qual, por sua vez, se resume ao discurso, o que significa que um texto histórico não é capaz de fornecer a realidade dos fatos, mas apenas realidades discursivas que se separam do real pelo imenso abismo denominado "linguagem". Segundo o ponto de vista relativista, a narrativa histórica "forja" o real sobre o discurso, sendo que todo discurso historiográfico se articula no real perdido (passado), o qual é reintroduzido em um texto fechado, como "relíquia". Assim, a realidade "se exila na linguagem", como dizia outro proponente do relativismo histórico, Michel de Certeau. Isso significa que decifrar a "verdade" que supostamente habita no corpo do documento histórico mediante a determinação acurada do significado das palavras e expressões usadas é uma tarefa fadada ao fracasso. No máximo, o que se consegue eliciar disso é a forma subjetiva com que o autor do documento experimentou o fato relatado ou a forma idiossincrática com que quis interpretá-lo ao descrevê-lo. A análise do documento histórico é a análise da subjetividade da pessoa do autor do documento, e não uma análise objetiva da realidade dos fatos históricos ocorridos.
3.) Origem do relativismo histórico: Nietzsche. A crítica nietzscheana da verdade, e mais especificamente da linguagem, é a base das teses céticas sobre o conhecimento histórico: [para Nietzsche] a pretensão do homem de conhecer a verdade, além de ser efêmera, é também ilusória. Ela tem as suas raízes na regularidade da linguagem, mas, "nas palavras, [segundo Nietzsche] a verdade nunca tem importância e nem mesmo expressão adequada. Caso contrário, com efeito, não existiriam tantas línguas".
Desse modo, a incapacidade das palavras de oferecem uma "expressão adequada" da verdade e da realidade rechaçaria toda a possibilidade de conhecimento. Essa incapacidade, característica intrínseca e inexorável da linguagem, destituiria a razão de ser de qualquer tentativa de expressar a realidade com palavras: "[Para Nietzsche existe um] abismo que separa as palavras e coisas: [por isso] a linguagem não pode dar uma imagem adequada da realidade" (2002, p. 28),
4.) A crise da causalidade. De acordo com Hume, as relações de causa-efeito possuem uma natureza puramente subjetiva, sendo que o fundamento da mesma se encontra no sentimento de crença, algo muito diferente dos processos intelectuais da inferência lógica. Segundo Hume, "a causalidade não é mais do que uma crença baseada na ação do hábito sobre a imaginação". Mal sabia Hume, ao adentrar ainda mais no terreno filosófico das idéias, que uma possível explicação para tal fenômeno estaria nas relações existentes entre linguagem e psicologia humana, mais especificadamente nos modelos de implicação e pressuposição lingüística, sendo que a palavra "porque" se caracteriza linguisticamente como um conector de implicação causal. Nesse contexto, palavras como "porque", "quando", "e", "enquanto", entre outras, podem ser caracterizadas como recursos que a humanidade criou para agilizar a comunicação e, dentro desse contexto como parte daquilo que Hume considerou como "frutos da imaginação humana". Tais palavras não possuem objeto análogo algum com nada que exista no mundo real. No entanto, "passam a ilusão" de que os objetos dos quais se referem estão relacionados um ao outro. Trazendo esse raciocínio para o campo histórico, os relativistas apregoam que a narrativa histórica "forja" o real sobre o discurso, sendo que todo discurso historiográfico se articula no real perdido (passado), o qual é reintroduzido em um texto fechado, como "relíquia". Assim, a realidade "se exila na linguagem" (CERTEAU, 1982, p. 51).
5.) História como ficção e nada mais que isso. Tendência a estetizar a história e
de separá-la de suas bases anteriormente aceitas de verdade e realidade (Hayden White). Estilo literário é mais importante que a verdade (jamais alcançada pelo historiador).
6.) Morte do humanismo: ao predizer, como Foucault desejosamente vaticinou, o fim
do homem, rejeita o humanismo como uma relíquia datada ou como uma
ilusão da ideologia burguesa; a ilusão de sujeitos criando sua própria história
por meio de suas atividades livres, o que é compreendido como um
disfarce para a opressão das mulheres, das classes trabalhadoras, dos nãobrancos,
dos desviantes sexuais e dos nativos colonizados pela sociedade
burguesa.
7.) Renúncia à tarefa da explicação e ao princípio da causalidade.
8.) Tendencia excessiva à especialização, que leva à morte de uma história teórica, ao mesmo tempo que conduz à pulverização da nossa compreensão do passado. Trata-se de uma história fragmentada.
9.) Tendência a relegar a realidade a pano de fundo, privilegiando em seu lugar os discursos proferidos sobre ela. " De outra forma, sob o olhar pós-modernista, as evidências não apontam para o passado, mas sim para interpretações do passado".
10.) Fim das grandes narrativas: se no passado, os historiadores concebiam a própria obra como um meio e não como um fim, e escolhiam narrativas ou formas literárias que se ajustavam à concepção que tinham da história, hoje, já não há nenhuma narrativa - ou fiosofia da história - capaz de lhe dar um sentido e unidade.

Fontes:
Indiciarismo - o triunfo da historiografia ginzburgiana sobre o relativismo histórico do discurso pós-modernista, por Francisco Chagas Vieira Lima Júnior. In http://www.webartigos.com/articles/14352/1/indiciarismo---o-triunfo-da-historiografia-ginzburgiana-sobre-o-relativismo-historico-do-discurso-pos-modernista/pagina1.html.

Niilismo pós-moderno

Segundo os seus críticos, a modernidade viola uma das leis fundamentais para a estabilidade de qualquer cultura: não prove nenhum sentido axiomático para a vida. A modernidade é a unica cultura que deixa o homem em total desamparo. Temos de buscar a bússola para a vida em nós mesmos. Quando Heidegger sublinha a desproteção metafisica contemporânea está chamando a atenção para este elemento importante que surge na cultura da modernidade. Trata-se de cultura cética, onde não há lugar para o “ser metafisico”. É um tema controverso. Para alguns, como para Vattimo, o niilismo não pode ser considerado contra-iluminista, tanto em seu sentido histórico quanto em seu sentido derivado. Historicamente, niilista é aquele que olha tudo criticamente; uma pessoa que não aceita à primeira vista nenhum principio, por mais veneravel que seja. É portanto compativel com o Iluminismo: a atitude crítica, a recusa de aceitar o préjugé, a convenção, a ordem tradicional.
No sentido pejorativo, em que o nihil do radical latino designa a total ausência de ilusões quanto ao homem e à sociedade, e não mera irreverência diante das convenções e instituições existentes, o niilismo faz parte integrante da episteme iluminista. Ou seja, o niilismo como recusa de toda a normatividade - tanto a que rege a inteligência quanto a que rege a vida moral. Dentro do Iluminismo, sempre esteve uma vertente que advogava a recusa de qualquer fundamento objetivo para a moral.
Geralmente, o niilismo pós-moderno é atribuido a Nieztsche e a Foucault, que afirmaram que não há um lado certo e que, renunciando a qualquer fundamento ético para a sua causa, está se imitando o poder que ele combate, pois, como este age diretamente sobre os corpos e não sobre as consciências, prescinde de toda base normativa.

A morte do sujeito

Segundo Fredric Jameson, enquanto os modernismos basearam-se na invenção de um estilo pessoal e privado, como se fosse uma impressão digital, ligando-se assim a concepção de um eu e de uma identidade privada únicos, responsáveis pela sua própria visãos singular de mundo - daí o estilo peculiar e inconfundível - no pós-modernismo, o antigo sujeito individual está morto, e fala-se mesmo no caráter ideológico tanto do conceito de indivíduo singular quanto da base teórica do individualismo. Para alguns, nem mesmo existiu um sujeito individual burguês - é uma mistificação filosófica e cultural. O que leva a um dilema estético: estão mortas a experiência e a ideologia do eu singular, uma experiência e uma ideologia que instrumentalizaram a prática estilística do modernismo clássico. Assim, os modelos antigos [Picasso, Proust, T. S. Eliot] já não funcionam, pois ninguém mais tem esse tipo de mundo. Chega-se à crença de que os estilos já foram inventados, não há mais nada para inventar, apenas um número singular de combinações. Daí o pastiche: num mundo em que a inovação estilistica ja não é possivel, só resta imitar os estilos mortos.
Para Rouanet, a morte do sujeito relacionada à modernidade já aparece em Max Weber, em A ética protestante e o espírito do capitalismo (1904): aí ele acusa seus contemporâneos de serem “especialistas sem espírito, sensualistas sem coração; e essa nulidade caiu na armadilha de julgar que atingiu um nivel de desenvolvimento jamais sonhado antes pela espécie humana”. A sociedade moderna é um cárcere, e as pessoas que aí vivem foram moldadas por suas barras; somos seres sem espírito, sem coração, sem identidade sexual ou pessoal. Aqui, o homem moderno como sujeito - como um ser vivente capaz de resposta, julgamento e ação sobre o mundo - desapareceu.
No fim da década de 60, Herbert Marcuse retomaria o problema em O homem unidimensional: de acordo com ele, tanto Marx como Freud são obsoletos, porque as lutas de classes e lutas sociais e os conflitos e contradições psicológicos foram abolidos pelo Estado de “administração total”. As massas não tem ego, nem id, suas almas são carentes de tensão interior e dinamismo; suas idéias, suas necessidades, até seus dramas “nao são deles mesmos”; suas vidas interiores são “inteiramente administradas”, programadas para produzir exatamente aqueles desejos que o sistema social pode satisfazeer. Ou seja: a modernidade é constituída por suas máquinas, das quais os homens modernos não passam de reproduções mecânicas.

Síntese breve da crise da modernidade

Os sonhos da modernidade consistem na aposta na razão, progresso, ciência e utopia.
Acreditou-se que a emergência da modernidade levaria à formação de uma ordem social mais feliz e mais segura. Acreditava-se que a recem-emergente ordem da modernidade seria essencialmente pacifica, em contraste com o militarismo que havia caracterizado épocas precedentes. Ainda que Marx e Durkheim vissem a era moderna como uma era turbulenta, acreditavam, contudo, que as possibilidades benéficas abertas pela era moderna superavam suas características negativas. Marx via a luta de classes como fonte de dissidências fundamentais na ordem capitalista, mas vislumbrava ao mesmo tempo a emergência de um sistema social mais humano. Durkheim acreditava que a expansão ulterior do industrialismo estabelecia uma vida social harmoniosa e gratificante, integrada através de uma combinação da divisão do trabalho e do individualismo moral. Max Weber era o mais pessimista entre eles, vendo o mundo moderno como um mundo paradoxal onde o progresso material era obtido apenas à custa de uma expansao da burocracia que esmagava a criatividade e a autonomia individuais. Ainda assim, nem mesmo ele antecipou plenamente o quão extensivo viria a ser o lado mais sombrio da modernidade.
Segundo Lyotard, o pensamento e ação dos séculos 19 e 20 são governados pela idéia de emancipação da humanidade - elaborada no final do sec. 18 na filosofia das Luzes e na Revolução Francesa. Idéia de que o progresso das ciencias, das tecnicas, das artes, das liberdades politicas emancipará a humanidade inteira da ignorância, pobreza, despotismo, formando cidadãos esclarecidos, donos do seu próprio destino. Idéia básica no liberalismo político, liberalismo econômico, marxismo, anarquismo, socialismo. O horizonte do progresso é a promessa de liberdade. Esta utopia de igualdade, produzida pela razão, governada pela técnica e desfrutada pela arte não se realizou. E hoje põe-se em causa a herança do Iluminismo.
Depois da experiencia de duas guerras mundiais, depois de Auschwitz, depois de Hiroshima, vivendo num mundo ameacado pela aniquilação atômica, pela ressurreição dos velhos fantasmas políticos e religiosos e pela degradação dos ecossistemas, o homem contemporâneo está cansado da modernidade. Segundo Rouanet, [Sergio Paulo Rouanet, As razoes do Iluminismo, São Paulo, Companhia das Letras, 1987-Ensaio: A verdade e a ilusao do pós-moderno], as vanguardas do alto modernismo perderam sua capacidade de escandalizar e se transformaram em establishment; os grandes mitos oitocentistas do progresso e da emancipação da humanidade pela ciência ou pela revolução são hoje considerados anacrônicos; a razão, instrumento com que o Iluminismo queria combater as trevas da superstição e do obscurantismo, é denunciada como o principal agente da dominação. Há uma consciência de que a economia e a sociedade são regidas por novos imperativos, por uma tecnociencia computadorizada que invade nosso espaco pessoal e substitui o livro pelo micro, e ninguém sabe ao certo se tudo isso anuncia uma nova Idade Média ou uma Renascença. O totalitarismo desempenhou um papel importante no desencantamento do mundo moderno. Acreditava-se que o uso arbitrário do poder político pertencia primariamente ao passado; o “despotismo” parecia ser principalmente característico de estados pré-modernos. Na esteira da ascensão do fascismo, do Holocausto, do stalinismo e de outros episódios da história do seculo XX, pode-se ver que a possibilidade de totalitarismos é contida dentro dos parâmetros da modernidade ao invés de ser por eles excluída. A perda da crença no progresso é um dos fatores que fundamentam a dissolução de “narrativas” da história. Ou seja, a conclusao de que a história “vai a lugar nenhum”. O “progresso” não cumpriu o que dele se desejava, gerando utopias negativas e medos do futuro. Segundo Lyotard, foi o progresso - o desenvolvimento tecnocientífico, artístico, econômico e político - que tornou possivel as guerras, os totalitarismos, o afastamento crescente entre a riqueza do Sul e a do Norte, o desmeprego e o isolamento das vanguardas artisticas.
Hoje é impossivel legitimar o desenvolvimento através da promessa de emancipação da humanidade inteira. A promessa não foi cumprida porque é o proprio desenvolvimento que impede de a cumprir. A miséria do Terceiro Mundo não é devido a falta de desenvolvimento, mas ao desenvolvimento. Não há nada que legitime o desenvolvimento.
A fé iluminista na ciência é denunciada como uma ingenuidade periogosa, que estimulou a destrutividade humana e criou novas formas de dominação, em vez de promover a felicidade universal. A crença no progresso expôs o homem a todas as regressões. Seu individualismo estimulou o advento do sujeito egoísta, preocupado unicamente com o ganho e a acumulação. A crença na mudanca das relações sociais como forma de implantar o paraíso na terra levou a uma utopia concentracionária, e resultou na criação de todos os Gulags. Sua cruzada desmistificadora solapou as bases de todos os valores, deixando o homem solitário, sob um ceu deserto, num mundo privado de sentido.
Na resenha “Teorias do Fascismo Alemao”(1930), Walter Benjamin faz algumas considerações de interesse geral sobre o papel da técnica no mundo moderno. A aceleração dos recursos técnicos - longe de promover um uso racional emancipador, no sentido de uma ordem econômica mais justa, mais social - está efetivamente a serviço de forças míticas destrutivas. O crítico, que visa a sociedade burguesa contemporanea, observa uma “enorme discrepância entre gigantescos meios tecnológicos e um mínimo conhecimento moral desses meios”. A técnica, ao invés de ser “uma chave para a felicidade”, ajudando a dominar as forças sociais elementares, é na verdade dominada por elas, tornando-se “um fetiche para a destruição”. Nessas considerações pesam a experiência da Primeira Guerra Mundial e o temor diante de outra catástrofe, ainda maior. A “separação entre a dimensão técnica e a assim chamada dimensão espiritual” é propícia a reforçar o temor. “Toda guerra futura”, adverte Benjamin, “é ao mesmo tempo uma insurreição da técnica que quer liberar-se do jugo da escravidão”.
Michel Foucault, considerado um dos papas do pós-modernismo, pregou o desprezo pela objetividade do saber e da ciência. O saber não é objetivo, porque sua validade é comprometida por uma gênese extra-científica e funciona a serviço de fins extra-cientificos. Para Lyotard o projeto da modernidade foi destruido. Auschwitz é um dos seus momentos de destruição - crime que inaugura a pós-modernidade. A vitória da tecnociência é uma outra maneira de destruir tal projeto, a medida que não deu mais liberdade ou riqueza ao homem. Tem-se a deslegitimação do projeto da modernidade. Tais narrativas de legitimação - progresso, razao, ciência - já não são mais dignas de credibilidade.
A tecnociência realiza o projeto moderno de o homem tornar-se dono e senhor da natureza. Mas ele próprio e seu mundo fazem parte da natureza. Seu cérebro, seu sistema nervoso, seu código genético, seu computador cortical, etc., isto faz com que o homem se desestabilize. Porque a sua ciência, a sua tecnologia faz parte também da natureza. Nestas condicoes de imbricação do sujeito e do objecto, como pode persistir o ideal de dominio ?
Lyotard é um autor mais interessado em mostrar que estamos no limiar de uma nova era e enfoca as questões de filosofia e epistemologia. Foi o autor responsavel pela popularização do termo pos-modernidade. Para ele, a pós-modernidade se refere a um deslocamento das tentativas de fundamentar a epistemologia, e da fé no progresso planejado humanamente. A condição da pós-modernidade é caracterizada por uma evaporação da "grand narrative" - o “enredo” dominante por meio do qual somos inseridos na história como seres tendo um passado definitivo e um futuro predizível. A perspectiva pós-moderna vê uma pluralidade de reivindicações heterogêneas de conhecimento, na qual a ciência não tem um lugar privilegiado. No passado, a modernidade a ciência recorreu a certos “enredos” para legitimar-se como saber. Tais enredos foram proporcionados pelo filosofo moderno, que privilegiou a problemática do conhecimento, fazendo da filosofia um metadiscurso de legitimação da própria ciência. Os “enredos” são: a dialética do espírito, emancipação do sujeito, crescimento da riqueza, etc. Com a crise da ciência, este quadro metafisico está invalidado e tem-se a crise de conceitos caros ao pensamento moderno, tais como razao, sujeito, totalidade, verdade, progresso. O pós-moderno caracteriza-se pela incredulidade perante o metadiscurso filosófico-metafísico, com suas pretensões atemporais e universalizantes. Segundo Lyotard, a ciência, para o filósofo moderno, herdeiro do Iluminismo, era vista como algo auto-referente, ou seja existia e se renovava incessantemente com base em si mesma. Era vista como uma atividade nobre, desinteressada, sem finalidade pré-estabelecida, senho que sua função primordial era romper com o mundo das trevas, mundo do senso comum e das crenças tradicionais, contribuindo assim para o desenvolvimento moral e espiritual da nação. No entanto, o cenário pós-moderno, com sua vocação informática e informacional, investe sobre esta concepção do saber cientifico. Descobriu-se que a fonte de todas as fontes chama-se informação e que a ciência nada mais é do que um certo modo de organizar, estocar e distribuir certas informações. A atividade cientifica deixou assim de ser aquela praxis que, segundo a avaliação humanistico-liberal, especulativa, investia a formação do espírito, do sujeito razoável, da pessoa humana, e até mesmo da humanidade. Com ela, o que vem se impondo é a concepção da ciência como tecnologia intelecutal, ou seja, como valor de troca, e por isso mesmo desvinculada do produtor (cientista) e do consumidor. Uma prática submetida ao capital e ao Estado, atuando como essa particular mercadoria chamada força de produção.
A crítica à razao formulada já por Nietzsche que evoca como o Outro da razao, o impulso dionisiaco, considerado um valor transcendente, de validade mais alta. A partir de uma certa leitura de Foucault, Deleuze e Lyotard, e sob a influência de retomada de Nieztsche, que vê relações de poder em toda parte, o irracionalismo considera a razão o principal agente de repressão, e não o órgão da liberdade, como afirmava a velha esquerda. Michel Foucault é autor de uma obra de demolição da razão ocidental, considerada como um simples alter ego do poder. Ou seja, a razão como máscara para o poder, como legitimação de processos de dominação. Mostra a funcionalização do saber a serviço do poder. Foucault é acusado de trair a herança iluminista e demitir-se da modernidade. Por um lado, ele desmascara a razão, considerando-a uma simples antena utilizada pelo poder para esquadrinhar, observar, normalizar; e por outro lado, desmoraliza os ideais humanitários do Iluminismo, vendo neles meras tecnologias de controle. Para Foucault, existem dois Kant: há o Kant que ele denuncia em As Palavras e as Coisas - inaugurador da filosofia do sujeito, responsável pela duplicidade entre o Eu empírico e o Eu transcendental, que envolve o saber moderno numa série de aporias insolúveis, as quais as ciências humanas tentam escapar pela acumulação incessante de novos conhecimentos, impulsionadas por uma “vontade de saber”, cuja principal função é encobrir o caráter ilusório destes conhecimentos. Este Kant está na origem de uma certa modernidade - epistêmica, espúria, repressiva, cujas estruturas São desmascaradas pela arqueogenealogia. E há um novo Kant, o fundador de uma crítica do presente. Este Kant está na origem de outra modernidade, cujo conteudo programático foi formulado pelo mesmo Kant, em seu ensaio sobre o Iluminismo: libertar o homem de todas as tutelas. Foucault, para Habermans, é contra-iluuminista e pós-moderno, considerado um representante do irracionalismo contemporaneo.
De acordo com Rouanet, a crise da razão conduz a necessidade de revisão do conceito clássico de razão. Depois de Marx e Freud, não podemos mais aceitar a idéia de uma razão soberana, livre de condicionamentos materiais e psíquicos. Depois de Weber, não ha como ignorar a diferença entre uma razão substantiva, capaz de pensar fins e valores, e uma razão instrumental, cuja competência se esgota no ajustamento de meios a fins. Depois de Adorno, não é possivel escamotear o lado repressivo da razão, a serviço de uma astúcia imemorial, de um projeto imemorial de dominação da natureza e sobre o homens. Depois de Foucault, não e lícito fechar os olhos ao entrelaçamento do saber e do poder.

Nietzsche, causalidade e história

É importante, dentro do arcabouço deste artigo, ver com maiores
detalhes este pós-modernismo que é acientífico antes de anticientífico. Em
primeiro lugar, ele pode nos ensinar o que deveríamos compreender como
historiografia pós-moderna e que, em segundo lugar, a historiografia sempre
teve algo de pós-moderna. Um bom exemplo do critério pós-moderno
de ciência é a “descontrução” — para usar o termo correto — da causalidade
por Nietzsche, que muitos consideram ser um dos mais importantes
pilares do pensamento científico. Na terminologia da causalidade, a causa
é a origem e o efeito, o produto secundário. Nietzsche então demonstra
que procuramos as causas apenas baseados em nossas observações dos efeitos
e que, portanto, o efeito é, de fato, o produto principal e a causa, o
secundário. “Se o efeito é o que causa que a causa seja uma causa, então o
efeito, não a causa, deve ser tratado como a origem”. Quem discordar
dizendo que Nietzsche confundiu a ordem dos fatores respectivamente da
pesquisa e da realidade não estará percebendo o cerne de sua linha de pensamento,
pois este é precisamente o artificialismo da hierarquia tradicional
de causa e efeito. Nosso treinamento científico, por assim dizer, “estabilizou-
nos” em uma aderência a essa hierarquia tradicional, mas além deste
treinamento intelectual não há nada que nos obrigue a continuar dessa
forma. O mesmo, se não mais ainda, pode ser dito da inversão desta hierarquia.
Esta é a maneira de se colocar os fatos no pós-modernismo."
Fonte: http://www.ppghis.ifcs.ufrj.br/media/topoi2a4.pdf

Pós-modernismo e Historiografia

A essência do pós-moderno segundo Rorty

Não há nada bem profundo dentro de nós, a menos que nós mesmos o tenhamos colocado; não há nenhum critério que nós mesmos não tenhamos criado no curso de formar uma prática; não há nenhum padrão de racionalidade que não seja um apelo a tal critério; não há nenhuma argumentação rigorosa que não seja a obediência às nossas próprias convenções.
(R. Rorty, Consequences of Pragmatism (Minneapolis: University of Minneapolis, 1982), xlii).

Sinais pós-modernos

"Os sinais do pós-modernismo que mais parecem incomodar a esquerda tradicional e a direita reacionária, resumindo, são: no campo político, a atitude desinteressada, despolitizada (no sentido tradicional); os pós-modernos, aparentemente falam e agem sem o peso da “angústia de influencia” (Bloom). Também são avessos aos extremismos clássicos, do tipo “esquerda-progressista” e “direita-conservadora”, uma vez que acreditam estarem estas definitivamente superadas. Os pós-modernistas, como já foi dito, descartam a idéia de revolução como passaporte necessário para uma “nova sociedade", um "novo homem” e uma “nova felicidade realista” “sem classes” e “sem desigualdade”. Valer dizer que além da descrença, existe o fato das revoluções ocorridas no socialismo real, resultaram em totalitarismos, fracasso econômico e decepção da população obrigada a conviver com a falta de liberdade. No campo da arte e na estética, parece incomodar a “emancipação do vulgar” e a mistura de gêneros. No campo da moral, existe a tendência a tolerância, o respeito as diferenças humanas, o pluralismo radical, ou seja, “sem inimigos a derrotar”; por vezes, também parecem se posicionar numa atitude de neutralidade moral frente às discussões que se encaminham para polarizações que cheiram ao maniqueísmo. No campo da educação, existe o discurso por um ensino e uma pesquisa inter ou transdisciplinar. Aqui, a crítica maior é dirigida ao ensino cientificista, especializado, que teima em fazer apologia do progresso, cego aos seus ‘efeitos colaterais’. O culto ao progresso, o culto da ciência e o culto da razão, e o desprezo às outras formas de conhecimento, são características da modernidade, do iluminismo, cujos efeitos colaterais pudemos sentir ao longo do século 20 (...) Na filosofia, aparece à oposição a tradição essencialista, a adoção pela pluralidade de argumentos, com a proliferação de paradoxos e do paralogismo – antecipadas na filosofia de Nietzsche, Wittgenstein e Levinas. No campo epistemológico, o sujeito pós-moderno desconfia dos “grandes sistemas teóricos” ou da “grande idéia”, que, no fundo é de inspiração religiosa – visto que são as religiões que sempre prometem a felicidade (uma “idade de ouro”) num tempo futuro. As religiões vivem deste tipo de propaganda enganosa. "
Fonte: http://www.espacoacademico.com.br/035/35eraylima.htm

A ação política pós-moderna, descrente da ação política tradicional (partidos políticos, sindicatos, eleição de representantes, etc), prefere atuar através de ações voluntárias através de ONGs, bem como nos atos mais ou menos espontâneos de grupos e de sujeitos que investem, por exemplo, em melhorar a saúde da sociedade. São as ações pró educação para diminuir a violência no trânsito, ações pró educação ambiental, a luta pela extinção do tabagismo e das drogas, a prevenção da DST e AIDS, a participação de ações contra a fome, prestar serviço para a eliminação do analfabetismo, a participação nos projetos e-learning, etc, podem ser de inspiração pós-modernista[5].

A crise da modernidade, segundo Sérgio Paulo Rouanet

O pensador brasileiro Sérgio Paulo Rouanet no seu estudo “As origens do Iluminismo” (1987) oportunamente observa que o prefixo pós tem muito mais o sentido de exorcizar o velho (a modernidade) do que de articular o novo (o pós-moderno). Ou seja, o que há é uma “consciência de ruptura”, que o autor não considera uma “ruptura real”. Rouanet escreve:

“depois da experiência de duas guerras mundiais, depois de Aushwitz, depois de Hiroshima, vivendo num mundo ameaçado pela aniquilação atômica, pela ressurreição dos velhos fanatismos políticos e religiosos e pela degradação dos ecossistemas, o homem contemporâneo está cansado da modernidade. Todos esses males são atribuídos ao mundo moderno. Essa atitude de rejeição se traduz na convicção de que estamos transitando para um novo paradigma. O desejo de ruptura leva à convicção de que essa ruptura já ocorreu, ou está em vias de ocorrer (...). O pós-moderno é muito mais a fadiga crepuscular de uma época que parece extinguir-se ingloriosamente que o hino de júbilo de amanhãs que despontam. À consciência pós-moderna não corresponde uma realidade pós-moderna. Nesse sentido, ela é um simples mal-estar da modernidade, um sonho da modernidade. É literalmente, falsa consciência, porque consciência de uma ruptura que não houve, ao mesmo tempo, é também consciência verdadeira, porque alude, de algum modo, às deformações da modernidade”.

Relativismo vs. verdade

Em "Pós-modernismo, razão e religião", de 1992, Gellner refere-se ao pós-modernismo da seguinte forma:

"O pós-modernismo é um movimento contemporâneo. É forte e está na moda. E sobretudo, não é completamente claro o que diabo ele é. Na verdade, a claridade não se encontra entre os seus principais atributos. Ele não apenas falha em praticar a claridade mas em ocasiões até a repudia abertamente...
A influência do movimento pode ser discernida na Antropologia, nos estudos literários, filosofia...
As noções de que tudo é um "texto", que o material básico de textos, sociedades e quase tudo é significado, que significados estão aí para serem descodificados ou "desconstruidos", que a noção de realidade objectiva é suspeita - tudo isto parece ser parte da atmosfera, ou nevoeiro, no qual o pós-modernismo floresce, ou que o pós-modernismo ajuda a espalhar.
O pós-modernismo parece ser claramente favorável ao relativismo, tanto quanto ele é capaz de claridade alguma, e hostil à ideia de uma verdade única, exclusiva, objectiva, externa ou transcendente. A verdade é ilusiva, polimorfa, íntima, subjectiva ... e provavelmente algumas outras coisas também. Simples é que ela não é...
Tudo é significado e significado é tudo e a hermenêutica o seu profeta. Qualquer coisa que seja, é feita pelo significado conferido a ela... "

terça-feira, 16 de junho de 2009

Lições rápidas sobre Pós-modernidade para os iniciantes

Pós-modernismo e História

O pressuposto pós-modernista central da análise histórica reside no relativismo levado ao limite: a ênfase na construção social e cultural da realidade conduz necessariamente ao desconstrucionismo da realidade, que já não é mais referente. Tudo não passa de um constructo histórico. Daí resulta a recusa de qualquer aspiração a verdades absolutas ou imutáveis. Segundo Ellen M. Wood, o problema do pós-modernismo na história diz respeito às suas implicações: sacrifica-se o geral e o coletivo (pensem nos ideiais de emancipação da humanidade), em nome do particular(identidades, culturas, etc.).
Bem, este problema não é novo. Ainda no século XVIII, a Filosofia das Luzes viu-se acuada pelo pós-modernista avant la lettre chamado Sade. Para além da variedade do mundo, os iluministas enxergaram na razão o baluarte capaz de levar a humanidade à felicidade. Havia uma aposta na razão, o que impedia o relativismo excessivo que nos domina hoje. Na verdade, o relativismo foi formulado com brilho pelos filósofos das Luzes, com a sua obsessão pelos países distantes, com costumes exóticos e insólitos. A convicção de que o mundo era vário e que o único princípio absoluto e válido residia na razão é uma conquista do Iluminismo.
Sade veio e chutou o pau da barraca: escarneceu da razão e brandiu a espada do relativismo, com a qual demoliu tudo à sua volta: moral, costumes, religião, etc. Sade ensinou-nos, com sangue e violência, que não há pedra sobre pedra. Que tudo é tão relativo, que a verdade é apenas uma falácia consoladora.
A crítica de Wood é tipicamente marxista e pró-iluminista. Aliás, mais do que nunca, Marx me parece aqui um legítimo herdeiro das Luzes. Salvar a razão iluminista é, para Wood, condição necessária para salvar os grandes sonhos do marxismo: a utopia de igualdade ou emancipação da humanidade fica ameaçada quando se destrói as categorias universalistas. Em seu lugar, nós, historiadores da cultura, perseguimos o local, o particular, o específico. Disso resulta uma história sem sonhos universais! Uma história sem verdades!
Olha, cara Ellen M. Wood, a última vez que vi alguém defender uma bandeira "absoluta" e "totalizante" foi quando George W. Bush invadiu o Iraque para levar até os "muçulmanos cegados pelo fanatismo religioso" os valores ocidentais - todos eles de base iluminista, como a democracia, a igualdade, etc. O que vi, em nome do legado iluminista, foi um banho de sangue. Nós, historiadores da cultura pós-modernistas, faríamos diferente: com a nossa compulsão pelo local, particular e minoritário, iríamos indagar àqueles bárbaros se queriam mesmo ser convertidos aos valores da NOSSA cultura. Sabe, pensando bem, nós deixamos sim de sonhar, mas ainda permitimos aos outros sonharem seus próprios sonhos - ou pesadelos.
Ironizando, tudo depende do nosso ponto de vista.

quinta-feira, 4 de junho de 2009

A volta da história política

Sou defensora ardorosa do retorno da história política. Mas não da história política formulada por René Renmond, que me parece excessivamente aparentada à velha e perniciosa história política do passado. O que é necessário é oxigenar e revitalizar o nosso repertório de questões, isto é, mudar drasticamente aquilo que se interroga ao passado. E só o faremos quando concebermos a política de uma perspectiva mais ampla, incorporando a contribuição da história cultural, de modo a alargar a própria noção de política. Não é esta a proposta de Remond, preso ainda às velhas concepções do passado.

Escolhas políticas: há escolhas ?

Não me parece, a princípio, que a política tem a ver com escolhas. Aliás, a história cultural tem mostrado que, para o bem e para o mal, há pouquíssimo de escolha consciente nas deliberações dos homens. Eles agem em consonância com tradições, crenças e valores, todos eles herdados, recebidos ainda em tenra infância, junto com o leite materno. Novamente retorno a Thompson: o que somos e o que queremos pertence ao domínio da cultura. Aprendemos com os nossos pais, o nosso grupo social, o nosso contexto. Isto é muito diferente de simplesmente escolher. É por esta razão que a história política é, sobretudo, história cultural. Até que se prove o contrário, a cultura mantém íntima ligação com o social: os estudos sobre os níveis culturais, ainda que destaquem a circularidade, tendem a pensar o enraizamento social entendido como a experiência histórica dos grupos. É claro que os contextos históricos variam, propondo a nós historiadores outras possibilidades de arranjos sócio-culturais. De qualquer modo, romper com a dimensão social da cultura pode indicar ao retorno da cultura entendida como aquilo que paira sobre os indivíduos.

O que afinal move os homens ?

Não há respostas absolutas para esta pergunta. O que nos move hoje é bem diferente daquilo que movia o homem ha cem anos atrás. Valores em desuso como honra e prestígio, por exemplo, foram mais decisivos, no passado, que o interesse material. Assistimos hoje a uma história que só consegue vislumbrar os interesses econômicos mais imediatos, como se no universo do Antigo Regime existisse esta coisa burguesa chamada lucro.
Estes historiadores, adeptos de um marxismo requentado, tendem a se esquecer que mesmo os interesses materiais estavam sujeitos às mediações culturais, o que significa que aquilo que, à primeira vista, diz respeito ao econômico, pode encobrir motivações mais profundas, com significado mais complexo.
Uma leitura apressada do conceito de redes clientelares no Antigo Regime, por exemplo, conduz a análises reducionistas sobre os valores que pautaram a ação humana. É bom lembrar das velhas lições de Thompson sobre as exigências peculiares dos trabalhadores do século XVIII, que abriam mão de salários melhores em nome da manutenção de um ritmo de trabalho menos massacrante.

O ocaso do político

A história política viveu um longo período de ostracismo, em função de uma série de fatores: a natural aversão à história factual e evenementielle do século XIX, excessivamente aferrada ao político como chave explicativa; a "descoberta" da longa duração como horizonte analítico, encetada pelos Annales; as matrizes estruturalistas que buscavam, para além da espuma das ondas, as estruturas mais profundas da sociedade; a crise da história narrativa (na primeira metade do século XX); etc. É preciso lembrar também que os anos 60 trouxeram uma ampliação do conceito de político: o politico deixou de ser a crônica agitada dos eventos políticos, para se instalar nas atitudes e posicionamentos pessoais de toda uma geração. Cuspir no chão, por exemplo, podia ganhar uma conotação política inusitada. A ampliação do político permitiu aos historiadores iluminar o campo das estratégias de resistência contra os instrumentos de dominação, fecundando sobretudo os estudos sobre a escravidão. Pequenos gestos como o roubo configurariam, nesta perspectiva, atos políticos, de consequências de grande impacto.

Tenha paciência, monsieur Renmond!

Que equívoco o parágrafo seguinte:

" A pergunta é, em outros termos, a seguinte: o que é determinante? Não resta
dúvida de que se, no conjunto das realidades, existem algumas que são determinantes e outras determinadas, parece mais lógico interessarmo-nos mais pelas primeiras do que pelas segundas. Se uma categoria de realidade for apenas o reflexo de outra coisa, por que não nos interessarmos prioritariamente pela fonte da luz, ao invés de seu reflexo?"

Se existem realidades determinantes ou determinadas (o que é bem questionável), poderia argüir que tal divisão pode variar ao longo da história, de modo que o que é determinante para nós, não o era para o passado. Diria mais que a dimensão religiosa, por exemplo, foi muito mais determinante entre os egípcios do que a dimensão política. Aliás, eram aspectos tão entrelaçados que jamais se dissociavam.

O que é mais explicativo na história ??

Que indagação mais equivocada esta de Rene Remond:
"Que parte de sua atenção o historiador pode, legitimamente, dedicar à história política sem se desviar de outras realidades que requereriam, talvez mais, seu interesse e sua atenção? Entendemos aqui que a ambição de todo historiador é atingir as verdadeiras realidades e que, não podendo captar a história em sua totalidade, devido à insuficiência do espírito humano, ele tentará dedicar-se ao mais significativo e ao mais explicativo."
Estamos fartos de saber que, em história, não existem instâncias mais significativas ou explicativa. Aliás, como já disse antes, todo objeto é válido, mesmo que seja a peruca de Maria Antonieta: afinal, qualquer objeto pode nos conduzir as "verdadeiras realidades". Com a Revolução dos Annales, o repertório do historiador deixou de ser uma questão. Ele simplesmente existe e é amplo. O que mais dizer ?

Obviedades por vezes esquecidas.

Segundo Rene Renmond, "a história se apresenta como uma totalidade não dividida e global. Periodicamente, os historiadores alimentam a ambição, um pouco insana, de fazer uma história total. Mas é o espírito humano quem introduz, nesta totalidade, distinções." Venho eu mesma insistindo nisso há alguns anos, procurando mostrar que todas as divisões são arbitrárias porque impostas pelo historiador. Os homens vivem a história como uma experiência total e não como gavetas estanques e separadas. Frequentemente, os múltiplos aspectos da realidade se entrelaçam, impossibilitando cisões rígidas entre político e religioso.
É tudo meio óbvio, mas nos esquecemos disso com frequência.

terça-feira, 2 de junho de 2009

Dicas para a próxima aula

para o site da Revista Estudos Historicos http://www.cpdoc.fgv.br/revista/asp/dsp_edicao.asp

e para o texto "por que a historia política?" da próx, aula http://www.cpdoc.fgv.br/revista/arq/130.pdf

quinta-feira, 28 de maio de 2009

Refletindo sobre a obra de Gruzinski

Os processos de ocidentalização, globalização e mestiçagens não se iniciaram a partir do século XV. Se o historiador olhar para o passado, encontrará os romanos espalhados pela Europa, Ásia e África, desbravando terras e mares. Na Idade Média, homens como Marco Polo chegaram a China e encontraram aí uma cultura completamente diferente da ocidental. Todas as culturas são mestiças: as mestiçagens ocorrem em níveis diferentes, muitas vezes apenas no âmbito local, de modo que a história da humanidade é a história de mestiçagens de toda sorte: biológica e cultural também. Há que se considerar alguns aspectos:
1.) As mestiçagens se processam necessariamente no interior de relações de poder e dominação. Não são, portanto, assépticas ou neutras, mas trazem a marca do conflito, e são, por isso mesmo, políticas.
2.) As culturas não são jamais sistemas fechados, estáveis ou coerentes. As mestiçagens operam assim entre culturas já mestiças, adaptadas às zonas de contato. É importante sondar como as culturas em foco carregam em seu bojo a experiência destes diálogos, uma vez que a própria mestiçagem é histórica do ponto de vista das culturas envolvidas. Noutras palavras, as reações aos contatos culturais são determinadas pela experiência deles no passado, predispondo ou não a assimilação do outro.
3.) A assimilação da cultura do outro, no contexto da alteridade, ocorre em condições e circunstâncias, segundo ritmos e tempos, que não são lineares. Compete ao historiador focalizar as particularidades destas mélanges.
4.) Assimilar significa re-significar: Ovídio na tapeçaria asteca é um outro Ovídio, reinventado no confronto das culturas.
5.) Sincretismo é um conceito que circula há mais de um século entre os historiadores da cultura. Lembram-se de Gilberto Freyre e do seu universo mestiço ? Pois bem, a idéia de uma aculturação impositiva e triunfante está completamente superada pelos estudiosos há muito tempo. Neste sentido, cabe indagar então a originalidade dos conceitos forjados por Gruzinski.
6.) Constatar mestiçagens não me parece suficiente. Os desdobramentos mais duvidosos do recurso generalizado aos conceitos gruzinskianos consistem em apontar os resultados da mestiçagem, contentando-se tão-somente em apontá-los, sem considerar os contextos complexos em que ocorrem. Mostrar que um objeto ou uma prática é mestiço pouco ou nada redunda em termos da interpretação histórica.
7.) Haveria um método gruzinskiano ? Se existe, ele é o da micro-história ou do estudo de caso. Análises particularizadas, centradas em contextos específicos, em escala pequena, são infinitamente mais eficientes porque iluminam casos pontuais, capazes de evidenciar os processos em plena ação.
8.) É preciso insistir mais uma vez que os contatos culturais ocorrem sempre no interior de formas de dominação, revestindo-se de uma conotação política, essencial para a seleção daquilo que é ou não assimilável. Mestiçagens culturais são, antes de tudo, mestiçagens políticas.
9.) Finalmente, o historiador não pode perder de vista a percepção dos agentes históricos envolvidos nos processos de contato cultural, interrogando-os sobre o sentido de sua experiência. Por trás de artefatos mestiços, existem histórias intrincadas que compete ao historiador desvelar. Afinal, o que pensa um índio mexicano que constrói uma catedral barroca a respeito daquilo que faz ?

Notas bem introdutórias sobre a obra de Gruzinski

Foco do trabalho de Gruzinski
- o foco do autor são os contatos culturais estabelecidos a partir do século XV. Seu objetivo é buscar os processos culturais que resultaram em mestiçagens, unindo lugares e culturais diferentes. Trata-se de pensar a aculturação como fator de união e não de ruptura. É na zona de penumbra, entre a sombra e a luz, que o olhar de Gruzinski flagra os intermediários culturais. Tais processos são inseparáveis da globalização ocorrida a partir do século XV, que instaura espaços de circulações, intercâmbios e conflitos.
- Debate teórico: posiciona-se contrário a análises dualistas, que pensam a aculturação como um processo de mão única, porque postula a autonomia, a invenção e a reação como dispositivos postos em ação pelas culturas.
- Palavras-chave: circulação, trânsito, mediação, conexões.
- Proposta metodológica: estudos de caso, micro-história.


Conceitos em Gruzinski
Mundializacao: expansionismo planetário, ocorrido a partir do século XV, ampliando a escala geográfica do mundo conhecido, colocando em contato culturas e civilizações até então estanques, diminuindo as distancias e promovendo a circulação em nível global de homens, idéias e objetos. O local torna-se global.

Ocidentalização: processo de dominação cultural empreendida pela Europa, a partir do século XV, que visa a difusão dos valores e tradições culturais ocidentais. A ocidentalização resulta em mestiçagens. Implica necessariamente confronto.

Mestiçagens: processo de mescla cultural, que pode ser empreendido como uma estratégia de dominação ou como estratégia de adaptação ou sobrevivência à imposição européia.

Globalização: fenômeno pelo qual as idéias e formas (ligadas à cultura erudita) se desenvolvem sem qualquer consideração à especificidade das culturas locais. Recusa o confronto, porque ignora a diferença local.

Passeurs culturelles: agentes situados entre duas ou mais culturas diferentes, promovendo a mediação entre elas.

Connected histories: ligações históricas existentes entre mundos, pessoas, objetos, idéias e tradições, situados em partes diferentes do globo, indicando elos comuns.

Hibridação: mestiçagens ocorridas no interior de um mesmo conjunto cultural.

Culturas mestiças: só alcançam a Europa sob o apelo do exotismo, ou se neutralizadas politicamente.


Gruzinski e o político: “parece-me que o termo ‘mestiçagem cultural’ é pouco como uma armadilha, uma vez que as mestiçagens são sempre políticas”.

Dicas sobre a obra de Gruzinski

http://pphp.uol.com.br/tropico/html/textos/3007,1.shl

http://nuevomundo.revues.org/index295.html

http://cerma.ehess.fr/document.php?id=155

Para a exposição, da qual ele é curador, Planeta Mestiço:
http://www.quaibranly.fr/fr/programmation/expositions/a-l-affiche/planete-metisse-to-mix-or-not-to-mix/index.html

Resenha do livro de Gruzinski II: O pensamento mestiço

Gruzinski, Serge.
O pensamento mestiço.
Antonio Carlos Amador Gil
Universidade Federal do Espírito Santo
Revista Brasileira de História. São Paulo, v. 22, nº 44, pp. 549-553 2002


Neste seu novo livro, Serge Gruzinski, historiador francês, diretor de pesquisa
do Centre Nacional de la Recherche Cientifique (CNRS) e diretor de
estudos na École des Hautes Études em Sciences Sociales (EHESS), comenta
em suas páginas iniciais a experiência precursora de Aby Warburg, um famoso
historiador da arte de inícios do século XX.Warburg, imbuído de um olhar
antropológico, descobrira um vínculo entre a cultura dos índios hopis do Novo
México e a civilização do Renascimento. Gruzinski também se volta para
esta relação, pois um dos objetivos centrais deste seu novo livro é observar
como os povos ameríndios da segunda metade do século XVI, estão impregnados
de diversos elementos europeus e vice-versa. Ou seja, se trataria de fato
do estudo de culturas mestiças.
Gruzinski, ao abordar este tema, faz sempre uma ponte com o presente.
Afinal, vivemos ainda mais radicalmente hoje as influências do processo de
mundialização que se iniciou com a expansão européia no século XVI. Da
Amazônia a Hong Kong vivemos em mundos mesclados, onde temos que nos
esforçar para juntar os fragmentos que nos chegam por todas as partes, hoje
em escala planetária. Nossas práticas atuais foram inauguradas no México do
Renascimento (p. 90). A narrativa de Gruzinski demonstra que o arcaico é
um engodo e que estamos profundamente contaminados pela modernidade.
Sua epígrafe retirada de Mário de Andrade: “Sou um tupi tangendo um alaúde”,
que também encerra o seu livro, exprime de maneira simbólica o que o
autor irá demonstrar em todo o decorrer do livro. Vários traços característicos
das sociedades analisadas, no caso, as sociedades indígenas da América
Espanhola do século XVI, provêm da Península Ibérica e da Itália do Renascimento
e não do distante passado pré-hispânico. O fenômeno da mestiçagem
manobra com um número muito grande de variáveis que muitas vezes
fogem à percepção dos historiadores. Além da grande complexidade das mestiçagens,
o autor demonstra que havia e ainda há uma grande desconfiança
em relação ao tema. Gruzinski estende a sua crítica aos antropólogos amantes
de arcaísmos e de “sociedades frias” ou de tradições autênticas. Gruzinski
certamente, ao escolher o título de seu livro, quer marcar sua distância do au-
tor de “O pensamento selvagem”. Em seu primeiro capítulo, de fato, critica a
antropologia estruturalista por ter desprezado a importância dos processos
de recomposição permanente, privilegiando por sua vez as totalidades coerentes,
estáveis e com contornos tangíveis. A todos que ignoram os efeitos da
colonização ocidental e as reações que se desencadearam, o autor acusa de
ocultadores da história, sem a qual é impossível conhecer a profundidade essencial
desse processo.
Gruzinski tem a preocupação de tentar definir o que seria o conceito de
mestiçagem. Tarefa difícil na medida em que os termos “mistura”, “mestiçagem”
e “sincretismo” são carregados de diversas conotações e a priori (p. 42).
Gruzinski alerta que a compreensão do termo choca-se com os hábitos intelectuais
que preferem os conjuntos monolíticos e os clichês e estereótipos em
vez dos espaços intermediários (p. 48). Alerta também para as ciladas que se
impõem quando se utilizam os conceitos de cultura ou identidade. Neste sentido,
o autor critica aos que “evocam a existência de uma ‘América Barroca’
ou uma ‘economia do Antigo Regime’ como se pudesse se tratar de realidades
homogêneas e coerentes, das quais só restasse estabelecer os traços originais”
(p. 54). Ou seja, Gruzinski adverte que para analisarmos as mestiçagens, nós,
historiadores, precisamos “submeter nossas ferramentas de ofício a uma crítica
severa e reexaminar as categorias canônicas que organizam, condicionam
e, com freqüência, compartimentam as nossas pesquisas” (p. 55). Na análise
que Gruzinski se propõe, emprega o termo “mestiçagem” para designar as
misturas que ocorreram em solo americano no século XVI entre seres humanos
imaginários e formas de vida, vindos de quatro continentes, América, Europa,
África e Ásia. Já o termo “hibridação” é utilizado por Gruzinski na análise
das misturas que se desenvolvem dentro de uma mesma civilização ou de
um mesmo conjunto histórico (p. 62).
Ao analisar o momento da conquista, Gruzinski relembra que a chegada
dos europeus gerou altas turbulências e foi sinônimo de desordem e caos, e
que sem esta noção em mente não podemos compreender a evolução da colonização
e as misturas provocadas pela conquista (p. 73). Surgiram o que o autor
chama de “zonas estranhas” onde a improvisação venceu a norma e o costume,
ou seja, os vínculos que ligaram os espanhóis e as populações ameríndias
foram profundamente marcados por indeterminações, precariedades e improvisações.
Havia um déficit constante nas trocas que se estabeleciam, visto que
se relacionavam fragmentos e estilhaços da Europa, da América e da África.
Além do impacto da conquista, Gruzinski desenvolve em um de seus capítulos
outro processo que considera importante na formação das mestiçagens na
América Espanhola: a ocidentalização. Ela operou a transferência para o nosso
lado do Atlântico dos imaginários e das instituições do Velho Mundo (p.
94). Um dos elos essenciais dessa ocidentalização foi a cristianização.
Ao considerar o processo de ocidentalização, Gruzinski passa a abordar
a cópia indígena. Fruto da demanda de uma clientela espanhola ou indígena,
ávida por objetos de estilo europeu, a reprodução indígena, ou melhor, a noção
de cópia acabou por se revelar extremamente elástica. Gruzinski demonstra
que a concepção européia de reprodução deixava um campo considerável
à interpretação e à invenção. Neste ponto, o autor começa a analisar o que
consideramos o cerne deste seu novo livro: as mestiçagens da imagem.
De uma forma bastante criativa, Gruzinski, ao analisar os frisos do desfile
das Sibilas que se encontram na “Casa do Decano” em Puebla ou os afrescos
que enfeitam a igreja agostiniana de Ixmiquilpan, foge dos esquematismos
e clichês construídos em relação aos índios da América, que sempre se
referem aos esplendores das civilizações pré-colombianas ou à decadência
inapelável que teria se sucedido (p. 131). Gruzinski demonstra que os indígenas,
que pintaram as imagens analisadas, se inspiraram nas obras de Ovídio,
principalmente em “As metamorfoses”, e adaptaram motivos clássicos de modo
a dar às cenas indígenas um aspecto antigo. Gruzinski acredita que a razão
para tantos esforços em unir os motivos ovidianos e indígenas seria maquiar
as inúmeras reminiscências pagãs cujas conseqüências reflexivas
poderiam assim estar fora do alcance de um espírito europeu.
Gruzinski direciona o nosso olhar para um espaço ornamental — os frisos.
Seriam estes espaços um local dedicado às frivolidades da decoração, aos
efeitos superficiais e ao culto do pormenor? Gruzinski afirma que é preciso
reconsiderar o papel das margens e do ornamento na arte européia e a devolver
a esses espaços o papel e o significado que lhes cabem. Gruzinski também
põe em relevo a importância do maneirismo na proliferação do gosto pelo
bizarro, pelos fenômenos estranhos e monstruosos, que influenciou o uso dos
grotescos europeus pelos artistas mexicanos — os tlacuilos. Os grotescos revelam
o gosto da época pelos arabescos e bestiários fantásticos. Em sua análise,
Gruzinski demonstra que os grotescos permitiram a troca entre dois mundos
— o indígena e o europeu. Neste sentido, o autor se volta para este objeto
tão pouco estudado mas essencial para o processo de localização de engrenagens
e processos de mestiçagem. Os grotescos europeus, ainda que explorem
tendências decorativas, privilegiam metamorfoses e hibridações que estão
presentes no pensamento do Renascimento. A contribuição de Gruzinski se
dá pelo fato de constatar que a hibridação presente nas gravuras analisadas se
transforma, em solo mexicano, em mestiçagens, uma vez que houve naquele
momento um alargamento gigantesco de horizontes (p. 193). Cabe ressaltar
que Gruzinski, em relação ao seu conceito de mestiçagem, não trabalha com
a idéia de choque, justaposição, substituição ou mascaramento. O autor considera
que o processo resultante da mestiçagem não é um puro produto dos
meios que o engendraram.Neste sentido, o autor prefere trabalhar com a idéia
de “atraidor” que à maneira de um ímã permite ajustar entre si peças díspares,
reorganizando-as e dando-lhes um sentido (p. 197). Ou seja, ao unir concepções
diversas, o atraidor possibilita a expressão de um pensamento mestiço,
como podemos ver nos afrescos indígenas, no mapa-paisagem da cidade
de Cholula ou nos cantares indígenas mexicanos.
Gruzinski se apropria da expressão “culture of disappearance” utilizada
pelo sociólogo Ackbar Abbas, que analisa a situação de Hong Kong no último
decênio do século XX (p. 315). Gruzinski considera míopes os que reduziram
o passado do México a uma história de massacres e destruições, e que por
muito tempo ignoraram ou fizeram desaparecer as formas singulares do Renascimento
indígena (p. 316). Os nobres mexicanos, para evitar serem assimilados
ou reabsorvidos, tiveram que aprender a “sobreviver a uma cultura
de desaparecimento” adotando estratégias para tirar partido de mutações,
evitando a hispanização pura e simples (p. 316). Portanto, o autor de uma
maneira bastante feliz descarta as ciladas da marginalidade que apenas consolida
o centro, assim como escapa às ilusões do local, percebido de forma
ideal como um porto seguro que teria conservado a antiga pureza (p. 317).
Gruzinski, o tempo todo, nos alerta que o conjunto de componentes extremamente
diversos como os pictogramas, os grotescos, as fábulas antigas, os
cromatismos, os efeitos luminosos, frutos do encontro e do enfrentamento,
não de duas culturas, mas do que ele chama “dois modos de expressão e comunicação”
(p. 273), pertencem a um espaço novo, a uma “zona estranha” (p.
243), cuja compreensão depende da invenção de novos procedimentos de
análise.
Os artistas da cidade do México no século XVI, assim como os cineastas
de Hong Kong, segundo o autor, elaboraram novas práticas da imagem, ao
mesmo tempo que desestabilizaram e distorceram os gêneros, sejam eles os
grotescos do Renascimento, os velhos cantares ameríndios ou os filmes de
kung-fu (p. 319).
Este livro de Gruzinski, além de ser uma obra de grande erudição, também
é uma lição de método. A nós, historiadores, propõe que estejamos atentos
à interdisciplinaridade e a todas as formas de expressão que permitam um
enriquecimento das formas de análise de nosso objeto de estudo. Como disse
anteriormente, Gruzinski faz diversas pontes com o presente. O seu estudo
do México espanhol após a conquista não impede que analise certas questões
contemporâneas como a mundialização, a “World Culture” e a influência cada
vez mais predominante dos Estados Unidos. Gruzinski, por exemplo, analisa
em seu livro os filmes de Peter Greenaway “Prospero´s Books” e “The Pillow
Book”, e o cinema do diretor Wong Kar-wai procedente de Hong Kong.
Um dos filmes de Wong Kar-wai, “Happy Together”, que narra as peripécias
de dois chineses em Buenos Aires, dá título a sua conclusão. Ao analisar este
filme, Gruzinski, através do olhar do diretor, expõe a força das mestiçagens
num mundo onde imperam os fluxos de informação e poder do capitalismo
em nível mundial.
Gruzinski está atento à complexidade do tema na medida em que realça
os limites que uma mistura pode alcançar, uma vez que pode se transformar
em uma nova realidade ou adquirir uma autonomia imprevista. Portanto, o
autor sugere que o estudo destes limites com suas conseqüências para o fenômeno
da mestiçagem está sendo reservado para um livro futuro. Nele, talvez
o autor possa nos mostrar algo que ainda não foi abordado neste livro. Qual
será o lugar da cultura mestiça neste processo de mundialização engendrado
em escala planetária pelo capitalismo? Gruzinski já demonstrou a impossibilidade
do retorno ao passado, do despertar das culturas submetidas. Restanos
indagar se a cultura mestiça se manterá refém dentro dos limites da tradição
ocidental ou se permitirá o surgimento de algo novo que romperá com
a lógica do sistema de dominação atualmente vigente.
Certamente o leitor que se dispuser a ler “O Pensamento Mestiço” de Serge
Gruzinski, não se decepcionará e poderá se deixar levar pelo prazer de descobrir
uma outra América.

Resenha do livro de Gruzinski: O pensamento mestiço

O Pensamento Mestiço
Serge Gruzinski, São Paulo: Companhia das Letras, 2001
Resenha por Isabela Frade
Publicado no fim de 2001, o trabalho de Gruzinski trouxe novos
ares aos estudos culturais. O Pensamento Mestiço é cativante. Texto
denso, porém fluido, escrito com estilo. O objeto de investigação é,
à primeira vista, matéria irrelevante para os temas da história da
arte: obras de qualidade estética duvidosa, produtos de encomenda
católica aos índios nahua no México colonial; Gruzinski debruça-se
sobre pinturas murais num maneirismo reciclado com imagéticas
autóctones. No entanto, o autor vai, pouco a pouco, desvelando o
processo de criação das obras, esmiuçando cada um dos elementos
da composição na reconstrução de seus conteúdos manifestos ou
subliminares. Cada obra adquire, a partir de sua leitura, riqueza e
complexidade antes opacas ao olhar leigo. O que aguça o interesse
do leitor, agora desperto, é a revelação dos aspectos híbridos de
uma imagética ameríndia que se insinua em representações religiosas
ou seculares dos meios europeus transposta pelos colonizadores
espanhóis.
O trabalho restaura as estratégias comunicacionais e expressivas
de uma cultura em dissolução. Aprofundando suas pesquisas sobre
“O macaco e a centaura”, detalhe do
painel “As Sibilas” na Casa del Deán,
séc XVI, Puebla, México.
Resenha por Isabela Frade
a formação das sociedades coloniais do Novo Mundo, o historiador
lança mão de análises sobre realidades espaço-temporais recentes,
como a Hong Kong ou a Berlim dos anos 90, na construção de uma
rede conceitual que objetiva apreender o fenômeno da mestiçagem
em seu sentido mais amplo. Esse aspecto torna a história, na perspectiva
apontada aqui, uma disciplina que pensa o tempo e a cultura
de modo não linear.
O hibridismo é tema corriqueiro nas análises sobre as culturas
pós-modernas. A globalização, no entanto, não é fenômeno recente,
lembra Gruzinski. O processo já ocorrera no Renascimento, com a
unificação do comércio mundial pelas linhas marítimas transcontinentais
capitaneadas por Portugal e Espanha, seguidos pela Holanda,
Inglaterra, França. Esse foi o princípio da ocidentalização do mundo.
O trabalho apresenta, a todo momento, vínculos entre passado e
presente, relativizando ambos: “A complexidade é ao mesmo tempo
uma questão de espaços e de temporalidades”.
Uma história, híbrida ela também, interface de inúmeras disciplinas,
e que se volta sobre si mesma, resgatando espaços vazios, vácuos
deixados para trás pelo etnocentrismo marcante dessa disciplina.
Gruzinski vai buscar pesquisa realizada por um historiador alemão
em 1889, trazendo-a à contemporaneidade. Seguindo os rastros da
viagem de Aby Warburg ao Novo México, retoma suas anotações
sobre a então percebida confluência das culturas renascentistas e
indígenas. Warburg, precocemente superando barreiras disciplinares e
realizando o que se poderia denominar uma etno-história, mergulhara
no universo mítico hopi, aproximando-se da antropologia de Franz
Boas. Seu interesse maior era fazer uma leitura do Renascimento, área
de estudos na qual era reconhecida autoridade, a partir da cultura
americana nativa. “Sem o estudo de sua cultura primitiva, eu nunca
teria tido condições de dar uma base mais ampla à psicologia do
Renascimento”, afirmou.
Acompanhando Warburg, mas buscando responder à questão maior
da hibridização das culturas, é no exame de obras do renascimento
indígena mexicano, cujo momento é aquele logo após a Conquista,
que Gruzinski detecta o fio que atravessa o fenômeno desde dentro. É
a partir do conceito de “atraidores” que se dá a intelecção do nódulo
central desse processo. O atraidor é definido como um tipo de forma
O Pensamento Mestiço
que permite o ajuste entre si de peças díspares, reorganizando-as
e dando-lhes sentido, funcionando como uma espécie de ímã. “É
o atraidor que seleciona esta ou aquela conexão, orienta esta ou
aquela ligação, sugere esta ou aquela associação entre as criaturas
e as coisas. Ele intervém como se fosse dotado de energia própria
e de capacidades organizadoras.” O atraidor opera como ponte,
paralelo entre universos culturais distintos que, ao serem postos
em contato, tendem a se unir e mesclar.
Mostrando as capacidades mimética e adaptadora excepcionais
dos artesãos indígenas no México recém-conquistado, o estudo
sobre o “pensamento mestiço” destaca as qualidades metamórficas
das formas híbridas. Essa qualidade potencial para a mestiçagem
– presente em alguns estilos visuais – é instável e mutante. Sua
instabilidade é a qualidade ou o modo de ser que permite a fusão com
outra classe de formas. A harmonização resulta de uma comunicação
entre os estilos, o que acaba resultando em um novo arranjo de
formas. Os estilos híbridos são férteis e fulgurantes. São dinâmicos,
e sua energia, vibrante e contagiante, busca sempre a adesão.
O “atraidor” não serve apenas como elo entre dois contextos, mas
segue amalgamando espaços e tempos, arrastando as formas para
movimentos de disjunção e conjunção perenes. Propulsor da composição
de formas híbridas, persiste como catalisador da mudança
e da alternância das formas. “O híbrido não é a marca deixada pela
continuidade da criação. É o produto de um movimento, de uma
instabilidade estrutural das coisas (...) O híbrido é também o resultado
espetacular de uma ‘simpatia’ dentro de um universo repleto
de uniões e enfrentamentos.” As formas híbridas, porque prenhes de
elementos atraidores, encontram-se em perene transformação. Suas
mais fortes características são a complexidade, a fragmentação, a
instabilidade, a imprevisibilidade, a diversidade, a opulência ou o
excesso, o mimetismo, a ambigüidade e a fecundidade.
O estilo grotesco-mexicano, resultado do amálgama da representação
de conquistadores e conquistados, é um veículo de criação
estética de um povo fragmentado, exposto ao máximo ao risco do
extermínio. É conhecida a crueldade dos suplícios impostos pelos
conquistadores. O domínio das culturas autóctones da América
espanhola, rápido e violento, perpassou pela destruição dos ícones
Resenha por Isabela Frade
e imagens das culturas locais. Porém, quando se tratou de fazer a
colonização, a estratégia mudou. Era preciso estabelecer modos de
influenciar a população autóctone. As elites indígenas foram cooptadas
com distinções, estratégia para um domínio continuado e a
arregimentação da força de trabalho para os projetos de implementação
da colônia. Assim, os tlacuilos, artistas nativos, são recrutados
para a confecção de pinturas murais nas igrejas e residências das
autoridades eclesiásticas instaladas no México a fim de dar início ao
processo de evangelização.
O aprendizado da técnica européia pelos tlacuilos exigiu uma
ruptura com os padrões epistemológicos nativos. A representação
européia, mesmo que de cunho religioso, era de natureza secular, a
arte indígena, por sua vez, recriação e atualização de seu universo
mítico. Essa seria a causa da adesão autóctone à imagética dos
grotescos, recriações renascentistas do paganismo romano. A ausência
de perspectiva, gravidade, lógica e linearidade narrativa, e
a presença de figuras metamorfoseadas, a disposição simétrica dos
motivos e o forte caráter ornamental são os elementos que apontam
para uma visualidade afim. “Apossando-se dos grotescos, os tlacuilos
desvirtuavam o prestígio e talvez a arte dos vencedores em benefício
do próprio mundo.” A partir dos grotescos, em que as formas se
encadeiam numa espécie de automatismo associativo e fantástico,
os amálgamas tornaram-se possíveis, as conjunções entre cultura
exógena e endógena fizeram-se visíveis.
Enquanto os espanhóis buscavam replicar o mundo europeu,
fazendo a transferência de seus imaginários e instituições, os indígenas
procuravam brechas, vieses que permitissem a expressão de sua
própria cosmogonia. Por meio do mimetismo, recurso desenvolvido
para a aceitação de um novo mercado, em que a réplica era privilegiada,
os tlacuilos paulatinamente penetravam outro universo de
signos. Pelo domínio relativo da nova semântica, foram introduzindo
elementos de sua própria cultura.
Gruzinski aponta o termo nahua ixptla como noção básica para o
entendimento da polissemia dos textos indígenas. Inerente às representações
estéticas nativas (plásticas ou literárias), ixptla significa a
natureza conjugada de todos os seres, concebida como contigüidade.
Reificações de uma essência sob formas mutáveis, seres e coisas parO
Pensamento Mestiço
ticipam de uma mesma emanação ou manifestação, ixplta. Mediante
a conjugação natural dos entes, a associação das formas, mesmo
que heteróclitas, é recurso utilizado como veículo de mensagens e
idéias próprias aos indígenas. Assim como o sincretismo afro-brasileiro,
muitas imagens católicas foram apropriadas pelos tlacuilos
para veicular sentidos próprios a sua cosmogonia.
Em Puebla, Gruzinski analisa as pinturas murais na Casa del Deán,
“Casa do Decano”, o edifício mais antigo da cidade, residência de
Tomás de la Plaza, terceiro decano da Igreja de Puebla em 1564 e
1589. Em um dos luxuosos salões, o autor se detém diante de uma
paisagem hispano-flamenga, lugar atravessado por uma procissão de
belas amazonas. Identifica a representação das Sibilas, as profetisas
da Antigüidade que teriam anunciado a chegada do Messias. Com
tema usual na arte cristã desde a Idade Média, a pintura surpreende
pela presença dos frisos que a emolduram. Casais insólitos:
centauras e macacos brincam num cenário vegetal exuberante.
Centauras de peito generoso oferecem flores a macacos de brincos
e cabelos escovinha. Na cena, divertida, Gruzinski percebe um
sentido enigmático.
Os macacos faziam parte do repertório das iluminuras e tapeçarias
medievais, mas os brincos dos macacos de Puebla implicam
referência local. O macaco, animal exótico para os europeus, ocupava
lugar importante na cosmogonia ameríndia. Estava presente nos
mitos e rituais, sendo uma das 20 figuras de seu calendário divinatório.
“As representações clássicas são enfeitadas com brincos e um
corte de cabelo escovinha, tal como seus congêneres em Puebla.
Os Nahuas associavam o macaco ozomatli à boa fortuna, à alegria,
e na sua acepção negativa à vida libertina.” A centaura, por sua
vez, imagem conhecida da Antigüidade clássica, oferece uma flor
a esse macaco nativo. O macaco está com a língua para fora, lambe
a flor, uma ololiuhqui, flor alucinógena, largamente utilizada pela
população autóctone em rituais divinatórios. Certamente entendida
pelos religiosos como divertimento, a cena apresenta a encenação
de um cerimonial conhecido pelos índios. O bizarro torna-se
disfarce na divulgação de uma mensagem facilmente decodificada
pela população nativa, encontrando seu lugar na residência de uma
autoridade eclesiástica.
Resenha por Isabela Frade
A mitologia antiga servia para a divulgação e perpetuação da
mitologia ameríndia. Estratégia dos vencidos, a perda de legitimidade
trouxe o disfarce das próprias representações como tática de
autopreservação. Por outro lado, os clérigos costumavam considerar
influência positiva a mescla de elementos das duas culturas, significando
a abertura necessária ao trabalho de evangelização em que
se empenhavam. A Igreja foi protagonista nesse processo de mestiçagem,
especialmente pela educação da elite indígena. Permitindo a
veiculação das imagens híbridas, o catolicismo foi adquirindo feição
própria, um colorido tropical que, por sua vez, afirmava a confluência
das culturas espanhola e ameríndia num complexo único, conformador
da sociedade mexicana nascente.
Gruzinski também explorou a Europa em busca das influências
mútuas entre Europa e América: na descrição dos afrescos na Galeria
dos Ofícios em Florença, destaca a presença de guerreiros astecas.
Essa presença reflete o apreço renascentista às novas descobertas. A
abertura à forma exótica atesta a abertura inerente à própria cultura
ocidental em relação à diferença. O espaço livre para a alteridade,
ainda que em forma decorativa – superficial, secundária –, possibilitou
a criação de novos cenários, impregnando o imaginário europeu
de novas configurações, enriquecendo-o. À adesão de elementos
da Antigüidade, causa/efeito da revolução cultural renascentista,
somaram-se as novas figuras descobertas nas Américas.
Gruzinski faz e refaz os percursos entre colônia e metrópole
inúmeras vezes. Perpassa também pelo vértice temporal, apontando
similitudes entre a protoglobalização renascentista e os avançados
processos de interconexão da globalização hodierna. Os olhares sobre
o passado buscam iluminar o presente, refazendo uma história
parcial e redutora. “Se o pensamento letrado ocidental, na sua forma
dogmática, impõe recortes nítidos e relega ao irracional, ao absurdo
ou ao demoníaco o que não se dobra às regras de sua retórica e ao
seu dualismo, o pensamento nahua – ou o que dele percebemos por
meio das constantes mediações européias – parece mais flexível.” A
história, ao pensar a realidade por meio de suas dobras e refluxos,
torna-se mais capaz de entender a complexidade dos fenômenos
sociais.
A sociabilidade contemporânea requalifica distâncias geográficas
O Pensamento Mestiço
e históricas, compondo um melting pot de sabores locais, mas com
ingredientes globais. O processo de mundialização instaura uma
“experiência fractal” que significa a vivência individual em escala
planetária, cada pessoa como parte de um universo interconectado,
servindo como referência a esse todo. Um processo feito de bricolagens,
desvios, misturas insólitas, reutilizações emerge em um
contexto fluido, em que a circulação é permanente. Os elementos do
passado servem como matéria-prima a novas reelaborações, ressurgem
em novos contextos, descolados de suas condições de origem.
Estamos imersos num processo de hibridização em grande escala.
Essa é uma história que só poderia acontecer agora. Uma história
híbrida, fruto de um pensamento atento à identidade e à alteridade
entre as culturas, mergulhando em seus hiatos e confluências,
debruçando-se exatamente sobre as nebulosas conformações de
seus encontros e desencontros. Uma história cultural das zonas de
indefinição e das misturas. Uma disciplina que emerge como fruto
de nosso próprio tempo, uma história mundializada.
Isabela Nascimento Frade, arte-educadora, Doutora em Comunicação, professora adjunta
do Depto de Educação Artística e Cultura Popular/ Instituto de Artes-UERJ