quinta-feira, 28 de maio de 2009

Resenha do livro de Gruzinski: O pensamento mestiço

O Pensamento Mestiço
Serge Gruzinski, São Paulo: Companhia das Letras, 2001
Resenha por Isabela Frade
Publicado no fim de 2001, o trabalho de Gruzinski trouxe novos
ares aos estudos culturais. O Pensamento Mestiço é cativante. Texto
denso, porém fluido, escrito com estilo. O objeto de investigação é,
à primeira vista, matéria irrelevante para os temas da história da
arte: obras de qualidade estética duvidosa, produtos de encomenda
católica aos índios nahua no México colonial; Gruzinski debruça-se
sobre pinturas murais num maneirismo reciclado com imagéticas
autóctones. No entanto, o autor vai, pouco a pouco, desvelando o
processo de criação das obras, esmiuçando cada um dos elementos
da composição na reconstrução de seus conteúdos manifestos ou
subliminares. Cada obra adquire, a partir de sua leitura, riqueza e
complexidade antes opacas ao olhar leigo. O que aguça o interesse
do leitor, agora desperto, é a revelação dos aspectos híbridos de
uma imagética ameríndia que se insinua em representações religiosas
ou seculares dos meios europeus transposta pelos colonizadores
espanhóis.
O trabalho restaura as estratégias comunicacionais e expressivas
de uma cultura em dissolução. Aprofundando suas pesquisas sobre
“O macaco e a centaura”, detalhe do
painel “As Sibilas” na Casa del Deán,
séc XVI, Puebla, México.
Resenha por Isabela Frade
a formação das sociedades coloniais do Novo Mundo, o historiador
lança mão de análises sobre realidades espaço-temporais recentes,
como a Hong Kong ou a Berlim dos anos 90, na construção de uma
rede conceitual que objetiva apreender o fenômeno da mestiçagem
em seu sentido mais amplo. Esse aspecto torna a história, na perspectiva
apontada aqui, uma disciplina que pensa o tempo e a cultura
de modo não linear.
O hibridismo é tema corriqueiro nas análises sobre as culturas
pós-modernas. A globalização, no entanto, não é fenômeno recente,
lembra Gruzinski. O processo já ocorrera no Renascimento, com a
unificação do comércio mundial pelas linhas marítimas transcontinentais
capitaneadas por Portugal e Espanha, seguidos pela Holanda,
Inglaterra, França. Esse foi o princípio da ocidentalização do mundo.
O trabalho apresenta, a todo momento, vínculos entre passado e
presente, relativizando ambos: “A complexidade é ao mesmo tempo
uma questão de espaços e de temporalidades”.
Uma história, híbrida ela também, interface de inúmeras disciplinas,
e que se volta sobre si mesma, resgatando espaços vazios, vácuos
deixados para trás pelo etnocentrismo marcante dessa disciplina.
Gruzinski vai buscar pesquisa realizada por um historiador alemão
em 1889, trazendo-a à contemporaneidade. Seguindo os rastros da
viagem de Aby Warburg ao Novo México, retoma suas anotações
sobre a então percebida confluência das culturas renascentistas e
indígenas. Warburg, precocemente superando barreiras disciplinares e
realizando o que se poderia denominar uma etno-história, mergulhara
no universo mítico hopi, aproximando-se da antropologia de Franz
Boas. Seu interesse maior era fazer uma leitura do Renascimento, área
de estudos na qual era reconhecida autoridade, a partir da cultura
americana nativa. “Sem o estudo de sua cultura primitiva, eu nunca
teria tido condições de dar uma base mais ampla à psicologia do
Renascimento”, afirmou.
Acompanhando Warburg, mas buscando responder à questão maior
da hibridização das culturas, é no exame de obras do renascimento
indígena mexicano, cujo momento é aquele logo após a Conquista,
que Gruzinski detecta o fio que atravessa o fenômeno desde dentro. É
a partir do conceito de “atraidores” que se dá a intelecção do nódulo
central desse processo. O atraidor é definido como um tipo de forma
O Pensamento Mestiço
que permite o ajuste entre si de peças díspares, reorganizando-as
e dando-lhes sentido, funcionando como uma espécie de ímã. “É
o atraidor que seleciona esta ou aquela conexão, orienta esta ou
aquela ligação, sugere esta ou aquela associação entre as criaturas
e as coisas. Ele intervém como se fosse dotado de energia própria
e de capacidades organizadoras.” O atraidor opera como ponte,
paralelo entre universos culturais distintos que, ao serem postos
em contato, tendem a se unir e mesclar.
Mostrando as capacidades mimética e adaptadora excepcionais
dos artesãos indígenas no México recém-conquistado, o estudo
sobre o “pensamento mestiço” destaca as qualidades metamórficas
das formas híbridas. Essa qualidade potencial para a mestiçagem
– presente em alguns estilos visuais – é instável e mutante. Sua
instabilidade é a qualidade ou o modo de ser que permite a fusão com
outra classe de formas. A harmonização resulta de uma comunicação
entre os estilos, o que acaba resultando em um novo arranjo de
formas. Os estilos híbridos são férteis e fulgurantes. São dinâmicos,
e sua energia, vibrante e contagiante, busca sempre a adesão.
O “atraidor” não serve apenas como elo entre dois contextos, mas
segue amalgamando espaços e tempos, arrastando as formas para
movimentos de disjunção e conjunção perenes. Propulsor da composição
de formas híbridas, persiste como catalisador da mudança
e da alternância das formas. “O híbrido não é a marca deixada pela
continuidade da criação. É o produto de um movimento, de uma
instabilidade estrutural das coisas (...) O híbrido é também o resultado
espetacular de uma ‘simpatia’ dentro de um universo repleto
de uniões e enfrentamentos.” As formas híbridas, porque prenhes de
elementos atraidores, encontram-se em perene transformação. Suas
mais fortes características são a complexidade, a fragmentação, a
instabilidade, a imprevisibilidade, a diversidade, a opulência ou o
excesso, o mimetismo, a ambigüidade e a fecundidade.
O estilo grotesco-mexicano, resultado do amálgama da representação
de conquistadores e conquistados, é um veículo de criação
estética de um povo fragmentado, exposto ao máximo ao risco do
extermínio. É conhecida a crueldade dos suplícios impostos pelos
conquistadores. O domínio das culturas autóctones da América
espanhola, rápido e violento, perpassou pela destruição dos ícones
Resenha por Isabela Frade
e imagens das culturas locais. Porém, quando se tratou de fazer a
colonização, a estratégia mudou. Era preciso estabelecer modos de
influenciar a população autóctone. As elites indígenas foram cooptadas
com distinções, estratégia para um domínio continuado e a
arregimentação da força de trabalho para os projetos de implementação
da colônia. Assim, os tlacuilos, artistas nativos, são recrutados
para a confecção de pinturas murais nas igrejas e residências das
autoridades eclesiásticas instaladas no México a fim de dar início ao
processo de evangelização.
O aprendizado da técnica européia pelos tlacuilos exigiu uma
ruptura com os padrões epistemológicos nativos. A representação
européia, mesmo que de cunho religioso, era de natureza secular, a
arte indígena, por sua vez, recriação e atualização de seu universo
mítico. Essa seria a causa da adesão autóctone à imagética dos
grotescos, recriações renascentistas do paganismo romano. A ausência
de perspectiva, gravidade, lógica e linearidade narrativa, e
a presença de figuras metamorfoseadas, a disposição simétrica dos
motivos e o forte caráter ornamental são os elementos que apontam
para uma visualidade afim. “Apossando-se dos grotescos, os tlacuilos
desvirtuavam o prestígio e talvez a arte dos vencedores em benefício
do próprio mundo.” A partir dos grotescos, em que as formas se
encadeiam numa espécie de automatismo associativo e fantástico,
os amálgamas tornaram-se possíveis, as conjunções entre cultura
exógena e endógena fizeram-se visíveis.
Enquanto os espanhóis buscavam replicar o mundo europeu,
fazendo a transferência de seus imaginários e instituições, os indígenas
procuravam brechas, vieses que permitissem a expressão de sua
própria cosmogonia. Por meio do mimetismo, recurso desenvolvido
para a aceitação de um novo mercado, em que a réplica era privilegiada,
os tlacuilos paulatinamente penetravam outro universo de
signos. Pelo domínio relativo da nova semântica, foram introduzindo
elementos de sua própria cultura.
Gruzinski aponta o termo nahua ixptla como noção básica para o
entendimento da polissemia dos textos indígenas. Inerente às representações
estéticas nativas (plásticas ou literárias), ixptla significa a
natureza conjugada de todos os seres, concebida como contigüidade.
Reificações de uma essência sob formas mutáveis, seres e coisas parO
Pensamento Mestiço
ticipam de uma mesma emanação ou manifestação, ixplta. Mediante
a conjugação natural dos entes, a associação das formas, mesmo
que heteróclitas, é recurso utilizado como veículo de mensagens e
idéias próprias aos indígenas. Assim como o sincretismo afro-brasileiro,
muitas imagens católicas foram apropriadas pelos tlacuilos
para veicular sentidos próprios a sua cosmogonia.
Em Puebla, Gruzinski analisa as pinturas murais na Casa del Deán,
“Casa do Decano”, o edifício mais antigo da cidade, residência de
Tomás de la Plaza, terceiro decano da Igreja de Puebla em 1564 e
1589. Em um dos luxuosos salões, o autor se detém diante de uma
paisagem hispano-flamenga, lugar atravessado por uma procissão de
belas amazonas. Identifica a representação das Sibilas, as profetisas
da Antigüidade que teriam anunciado a chegada do Messias. Com
tema usual na arte cristã desde a Idade Média, a pintura surpreende
pela presença dos frisos que a emolduram. Casais insólitos:
centauras e macacos brincam num cenário vegetal exuberante.
Centauras de peito generoso oferecem flores a macacos de brincos
e cabelos escovinha. Na cena, divertida, Gruzinski percebe um
sentido enigmático.
Os macacos faziam parte do repertório das iluminuras e tapeçarias
medievais, mas os brincos dos macacos de Puebla implicam
referência local. O macaco, animal exótico para os europeus, ocupava
lugar importante na cosmogonia ameríndia. Estava presente nos
mitos e rituais, sendo uma das 20 figuras de seu calendário divinatório.
“As representações clássicas são enfeitadas com brincos e um
corte de cabelo escovinha, tal como seus congêneres em Puebla.
Os Nahuas associavam o macaco ozomatli à boa fortuna, à alegria,
e na sua acepção negativa à vida libertina.” A centaura, por sua
vez, imagem conhecida da Antigüidade clássica, oferece uma flor
a esse macaco nativo. O macaco está com a língua para fora, lambe
a flor, uma ololiuhqui, flor alucinógena, largamente utilizada pela
população autóctone em rituais divinatórios. Certamente entendida
pelos religiosos como divertimento, a cena apresenta a encenação
de um cerimonial conhecido pelos índios. O bizarro torna-se
disfarce na divulgação de uma mensagem facilmente decodificada
pela população nativa, encontrando seu lugar na residência de uma
autoridade eclesiástica.
Resenha por Isabela Frade
A mitologia antiga servia para a divulgação e perpetuação da
mitologia ameríndia. Estratégia dos vencidos, a perda de legitimidade
trouxe o disfarce das próprias representações como tática de
autopreservação. Por outro lado, os clérigos costumavam considerar
influência positiva a mescla de elementos das duas culturas, significando
a abertura necessária ao trabalho de evangelização em que
se empenhavam. A Igreja foi protagonista nesse processo de mestiçagem,
especialmente pela educação da elite indígena. Permitindo a
veiculação das imagens híbridas, o catolicismo foi adquirindo feição
própria, um colorido tropical que, por sua vez, afirmava a confluência
das culturas espanhola e ameríndia num complexo único, conformador
da sociedade mexicana nascente.
Gruzinski também explorou a Europa em busca das influências
mútuas entre Europa e América: na descrição dos afrescos na Galeria
dos Ofícios em Florença, destaca a presença de guerreiros astecas.
Essa presença reflete o apreço renascentista às novas descobertas. A
abertura à forma exótica atesta a abertura inerente à própria cultura
ocidental em relação à diferença. O espaço livre para a alteridade,
ainda que em forma decorativa – superficial, secundária –, possibilitou
a criação de novos cenários, impregnando o imaginário europeu
de novas configurações, enriquecendo-o. À adesão de elementos
da Antigüidade, causa/efeito da revolução cultural renascentista,
somaram-se as novas figuras descobertas nas Américas.
Gruzinski faz e refaz os percursos entre colônia e metrópole
inúmeras vezes. Perpassa também pelo vértice temporal, apontando
similitudes entre a protoglobalização renascentista e os avançados
processos de interconexão da globalização hodierna. Os olhares sobre
o passado buscam iluminar o presente, refazendo uma história
parcial e redutora. “Se o pensamento letrado ocidental, na sua forma
dogmática, impõe recortes nítidos e relega ao irracional, ao absurdo
ou ao demoníaco o que não se dobra às regras de sua retórica e ao
seu dualismo, o pensamento nahua – ou o que dele percebemos por
meio das constantes mediações européias – parece mais flexível.” A
história, ao pensar a realidade por meio de suas dobras e refluxos,
torna-se mais capaz de entender a complexidade dos fenômenos
sociais.
A sociabilidade contemporânea requalifica distâncias geográficas
O Pensamento Mestiço
e históricas, compondo um melting pot de sabores locais, mas com
ingredientes globais. O processo de mundialização instaura uma
“experiência fractal” que significa a vivência individual em escala
planetária, cada pessoa como parte de um universo interconectado,
servindo como referência a esse todo. Um processo feito de bricolagens,
desvios, misturas insólitas, reutilizações emerge em um
contexto fluido, em que a circulação é permanente. Os elementos do
passado servem como matéria-prima a novas reelaborações, ressurgem
em novos contextos, descolados de suas condições de origem.
Estamos imersos num processo de hibridização em grande escala.
Essa é uma história que só poderia acontecer agora. Uma história
híbrida, fruto de um pensamento atento à identidade e à alteridade
entre as culturas, mergulhando em seus hiatos e confluências,
debruçando-se exatamente sobre as nebulosas conformações de
seus encontros e desencontros. Uma história cultural das zonas de
indefinição e das misturas. Uma disciplina que emerge como fruto
de nosso próprio tempo, uma história mundializada.
Isabela Nascimento Frade, arte-educadora, Doutora em Comunicação, professora adjunta
do Depto de Educação Artística e Cultura Popular/ Instituto de Artes-UERJ

Um comentário:

  1. comecei a fazer historia neste sementre na PUC e estou procurando ler o maximo q posso, pricipalmente autores atuais.tenho um seminario para apresentar e vou fazer a introdução sobre o pensamento mestiço, gostaria q alguem me ajudasse.

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