quinta-feira, 28 de maio de 2009

Resenha do livro de Gruzinski II: O pensamento mestiço

Gruzinski, Serge.
O pensamento mestiço.
Antonio Carlos Amador Gil
Universidade Federal do Espírito Santo
Revista Brasileira de História. São Paulo, v. 22, nº 44, pp. 549-553 2002


Neste seu novo livro, Serge Gruzinski, historiador francês, diretor de pesquisa
do Centre Nacional de la Recherche Cientifique (CNRS) e diretor de
estudos na École des Hautes Études em Sciences Sociales (EHESS), comenta
em suas páginas iniciais a experiência precursora de Aby Warburg, um famoso
historiador da arte de inícios do século XX.Warburg, imbuído de um olhar
antropológico, descobrira um vínculo entre a cultura dos índios hopis do Novo
México e a civilização do Renascimento. Gruzinski também se volta para
esta relação, pois um dos objetivos centrais deste seu novo livro é observar
como os povos ameríndios da segunda metade do século XVI, estão impregnados
de diversos elementos europeus e vice-versa. Ou seja, se trataria de fato
do estudo de culturas mestiças.
Gruzinski, ao abordar este tema, faz sempre uma ponte com o presente.
Afinal, vivemos ainda mais radicalmente hoje as influências do processo de
mundialização que se iniciou com a expansão européia no século XVI. Da
Amazônia a Hong Kong vivemos em mundos mesclados, onde temos que nos
esforçar para juntar os fragmentos que nos chegam por todas as partes, hoje
em escala planetária. Nossas práticas atuais foram inauguradas no México do
Renascimento (p. 90). A narrativa de Gruzinski demonstra que o arcaico é
um engodo e que estamos profundamente contaminados pela modernidade.
Sua epígrafe retirada de Mário de Andrade: “Sou um tupi tangendo um alaúde”,
que também encerra o seu livro, exprime de maneira simbólica o que o
autor irá demonstrar em todo o decorrer do livro. Vários traços característicos
das sociedades analisadas, no caso, as sociedades indígenas da América
Espanhola do século XVI, provêm da Península Ibérica e da Itália do Renascimento
e não do distante passado pré-hispânico. O fenômeno da mestiçagem
manobra com um número muito grande de variáveis que muitas vezes
fogem à percepção dos historiadores. Além da grande complexidade das mestiçagens,
o autor demonstra que havia e ainda há uma grande desconfiança
em relação ao tema. Gruzinski estende a sua crítica aos antropólogos amantes
de arcaísmos e de “sociedades frias” ou de tradições autênticas. Gruzinski
certamente, ao escolher o título de seu livro, quer marcar sua distância do au-
tor de “O pensamento selvagem”. Em seu primeiro capítulo, de fato, critica a
antropologia estruturalista por ter desprezado a importância dos processos
de recomposição permanente, privilegiando por sua vez as totalidades coerentes,
estáveis e com contornos tangíveis. A todos que ignoram os efeitos da
colonização ocidental e as reações que se desencadearam, o autor acusa de
ocultadores da história, sem a qual é impossível conhecer a profundidade essencial
desse processo.
Gruzinski tem a preocupação de tentar definir o que seria o conceito de
mestiçagem. Tarefa difícil na medida em que os termos “mistura”, “mestiçagem”
e “sincretismo” são carregados de diversas conotações e a priori (p. 42).
Gruzinski alerta que a compreensão do termo choca-se com os hábitos intelectuais
que preferem os conjuntos monolíticos e os clichês e estereótipos em
vez dos espaços intermediários (p. 48). Alerta também para as ciladas que se
impõem quando se utilizam os conceitos de cultura ou identidade. Neste sentido,
o autor critica aos que “evocam a existência de uma ‘América Barroca’
ou uma ‘economia do Antigo Regime’ como se pudesse se tratar de realidades
homogêneas e coerentes, das quais só restasse estabelecer os traços originais”
(p. 54). Ou seja, Gruzinski adverte que para analisarmos as mestiçagens, nós,
historiadores, precisamos “submeter nossas ferramentas de ofício a uma crítica
severa e reexaminar as categorias canônicas que organizam, condicionam
e, com freqüência, compartimentam as nossas pesquisas” (p. 55). Na análise
que Gruzinski se propõe, emprega o termo “mestiçagem” para designar as
misturas que ocorreram em solo americano no século XVI entre seres humanos
imaginários e formas de vida, vindos de quatro continentes, América, Europa,
África e Ásia. Já o termo “hibridação” é utilizado por Gruzinski na análise
das misturas que se desenvolvem dentro de uma mesma civilização ou de
um mesmo conjunto histórico (p. 62).
Ao analisar o momento da conquista, Gruzinski relembra que a chegada
dos europeus gerou altas turbulências e foi sinônimo de desordem e caos, e
que sem esta noção em mente não podemos compreender a evolução da colonização
e as misturas provocadas pela conquista (p. 73). Surgiram o que o autor
chama de “zonas estranhas” onde a improvisação venceu a norma e o costume,
ou seja, os vínculos que ligaram os espanhóis e as populações ameríndias
foram profundamente marcados por indeterminações, precariedades e improvisações.
Havia um déficit constante nas trocas que se estabeleciam, visto que
se relacionavam fragmentos e estilhaços da Europa, da América e da África.
Além do impacto da conquista, Gruzinski desenvolve em um de seus capítulos
outro processo que considera importante na formação das mestiçagens na
América Espanhola: a ocidentalização. Ela operou a transferência para o nosso
lado do Atlântico dos imaginários e das instituições do Velho Mundo (p.
94). Um dos elos essenciais dessa ocidentalização foi a cristianização.
Ao considerar o processo de ocidentalização, Gruzinski passa a abordar
a cópia indígena. Fruto da demanda de uma clientela espanhola ou indígena,
ávida por objetos de estilo europeu, a reprodução indígena, ou melhor, a noção
de cópia acabou por se revelar extremamente elástica. Gruzinski demonstra
que a concepção européia de reprodução deixava um campo considerável
à interpretação e à invenção. Neste ponto, o autor começa a analisar o que
consideramos o cerne deste seu novo livro: as mestiçagens da imagem.
De uma forma bastante criativa, Gruzinski, ao analisar os frisos do desfile
das Sibilas que se encontram na “Casa do Decano” em Puebla ou os afrescos
que enfeitam a igreja agostiniana de Ixmiquilpan, foge dos esquematismos
e clichês construídos em relação aos índios da América, que sempre se
referem aos esplendores das civilizações pré-colombianas ou à decadência
inapelável que teria se sucedido (p. 131). Gruzinski demonstra que os indígenas,
que pintaram as imagens analisadas, se inspiraram nas obras de Ovídio,
principalmente em “As metamorfoses”, e adaptaram motivos clássicos de modo
a dar às cenas indígenas um aspecto antigo. Gruzinski acredita que a razão
para tantos esforços em unir os motivos ovidianos e indígenas seria maquiar
as inúmeras reminiscências pagãs cujas conseqüências reflexivas
poderiam assim estar fora do alcance de um espírito europeu.
Gruzinski direciona o nosso olhar para um espaço ornamental — os frisos.
Seriam estes espaços um local dedicado às frivolidades da decoração, aos
efeitos superficiais e ao culto do pormenor? Gruzinski afirma que é preciso
reconsiderar o papel das margens e do ornamento na arte européia e a devolver
a esses espaços o papel e o significado que lhes cabem. Gruzinski também
põe em relevo a importância do maneirismo na proliferação do gosto pelo
bizarro, pelos fenômenos estranhos e monstruosos, que influenciou o uso dos
grotescos europeus pelos artistas mexicanos — os tlacuilos. Os grotescos revelam
o gosto da época pelos arabescos e bestiários fantásticos. Em sua análise,
Gruzinski demonstra que os grotescos permitiram a troca entre dois mundos
— o indígena e o europeu. Neste sentido, o autor se volta para este objeto
tão pouco estudado mas essencial para o processo de localização de engrenagens
e processos de mestiçagem. Os grotescos europeus, ainda que explorem
tendências decorativas, privilegiam metamorfoses e hibridações que estão
presentes no pensamento do Renascimento. A contribuição de Gruzinski se
dá pelo fato de constatar que a hibridação presente nas gravuras analisadas se
transforma, em solo mexicano, em mestiçagens, uma vez que houve naquele
momento um alargamento gigantesco de horizontes (p. 193). Cabe ressaltar
que Gruzinski, em relação ao seu conceito de mestiçagem, não trabalha com
a idéia de choque, justaposição, substituição ou mascaramento. O autor considera
que o processo resultante da mestiçagem não é um puro produto dos
meios que o engendraram.Neste sentido, o autor prefere trabalhar com a idéia
de “atraidor” que à maneira de um ímã permite ajustar entre si peças díspares,
reorganizando-as e dando-lhes um sentido (p. 197). Ou seja, ao unir concepções
diversas, o atraidor possibilita a expressão de um pensamento mestiço,
como podemos ver nos afrescos indígenas, no mapa-paisagem da cidade
de Cholula ou nos cantares indígenas mexicanos.
Gruzinski se apropria da expressão “culture of disappearance” utilizada
pelo sociólogo Ackbar Abbas, que analisa a situação de Hong Kong no último
decênio do século XX (p. 315). Gruzinski considera míopes os que reduziram
o passado do México a uma história de massacres e destruições, e que por
muito tempo ignoraram ou fizeram desaparecer as formas singulares do Renascimento
indígena (p. 316). Os nobres mexicanos, para evitar serem assimilados
ou reabsorvidos, tiveram que aprender a “sobreviver a uma cultura
de desaparecimento” adotando estratégias para tirar partido de mutações,
evitando a hispanização pura e simples (p. 316). Portanto, o autor de uma
maneira bastante feliz descarta as ciladas da marginalidade que apenas consolida
o centro, assim como escapa às ilusões do local, percebido de forma
ideal como um porto seguro que teria conservado a antiga pureza (p. 317).
Gruzinski, o tempo todo, nos alerta que o conjunto de componentes extremamente
diversos como os pictogramas, os grotescos, as fábulas antigas, os
cromatismos, os efeitos luminosos, frutos do encontro e do enfrentamento,
não de duas culturas, mas do que ele chama “dois modos de expressão e comunicação”
(p. 273), pertencem a um espaço novo, a uma “zona estranha” (p.
243), cuja compreensão depende da invenção de novos procedimentos de
análise.
Os artistas da cidade do México no século XVI, assim como os cineastas
de Hong Kong, segundo o autor, elaboraram novas práticas da imagem, ao
mesmo tempo que desestabilizaram e distorceram os gêneros, sejam eles os
grotescos do Renascimento, os velhos cantares ameríndios ou os filmes de
kung-fu (p. 319).
Este livro de Gruzinski, além de ser uma obra de grande erudição, também
é uma lição de método. A nós, historiadores, propõe que estejamos atentos
à interdisciplinaridade e a todas as formas de expressão que permitam um
enriquecimento das formas de análise de nosso objeto de estudo. Como disse
anteriormente, Gruzinski faz diversas pontes com o presente. O seu estudo
do México espanhol após a conquista não impede que analise certas questões
contemporâneas como a mundialização, a “World Culture” e a influência cada
vez mais predominante dos Estados Unidos. Gruzinski, por exemplo, analisa
em seu livro os filmes de Peter Greenaway “Prospero´s Books” e “The Pillow
Book”, e o cinema do diretor Wong Kar-wai procedente de Hong Kong.
Um dos filmes de Wong Kar-wai, “Happy Together”, que narra as peripécias
de dois chineses em Buenos Aires, dá título a sua conclusão. Ao analisar este
filme, Gruzinski, através do olhar do diretor, expõe a força das mestiçagens
num mundo onde imperam os fluxos de informação e poder do capitalismo
em nível mundial.
Gruzinski está atento à complexidade do tema na medida em que realça
os limites que uma mistura pode alcançar, uma vez que pode se transformar
em uma nova realidade ou adquirir uma autonomia imprevista. Portanto, o
autor sugere que o estudo destes limites com suas conseqüências para o fenômeno
da mestiçagem está sendo reservado para um livro futuro. Nele, talvez
o autor possa nos mostrar algo que ainda não foi abordado neste livro. Qual
será o lugar da cultura mestiça neste processo de mundialização engendrado
em escala planetária pelo capitalismo? Gruzinski já demonstrou a impossibilidade
do retorno ao passado, do despertar das culturas submetidas. Restanos
indagar se a cultura mestiça se manterá refém dentro dos limites da tradição
ocidental ou se permitirá o surgimento de algo novo que romperá com
a lógica do sistema de dominação atualmente vigente.
Certamente o leitor que se dispuser a ler “O Pensamento Mestiço” de Serge
Gruzinski, não se decepcionará e poderá se deixar levar pelo prazer de descobrir
uma outra América.

Um comentário:

  1. Boa noite, procuro este livro e não encontro nas lojas como também nos Sebos, será que a amiga ou alguém tem este livro em PDF para postar.
    Também estou a procura de outro livro:
    "As doenças tem História" de Le Goff

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