quinta-feira, 28 de maio de 2009

Resenha do livro de Gruzinski: A guerra das imagens

História, imagem e narrativas
No 4, ano 2, abril/2007 – ISSN 1808-9895
http://www.historiaimagem.com.br
206
GRUZINKI, Serge. A guerra das imagens: de Cristóvão Colombo a
Blade Runner (1492-2019). Trad. Rosa F. d’Aguiar. São Paulo:
Companhia das Letras, 2006. 348 p.
Thiago Juliano Sayão
Doutorando em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS
thiagosayao@hotmail.com

Este livro é apresentado pelo autor como o “último capítulo de uma viagem de
historiador ao México espanhol” (p.21). Publicado originalmente na França em 1990,
La guerre des images (A guerra das imagens) chega agora ao público brasileiro,
traduzido por Rosa Freire d’Aguiar, como a continuação dos estudos sobre o processo
de colonização mexicana, que já contava com: Les Hommes-dieux du Méxique (Os
homens-deuses do México) - 1985; La colonisation de l’imaginaire (A colonização do
imaginário) – 1988; e, De l’idolâtrie (Sobre a idolatria) - 1988. Todas obras de Serge Gruzinski, historiador, paleógrafo e professor na École des Hautes Études em Sciences Sociale (EHESS), que também dirige um núcleo de pesquisas no Centre National de la Recherche Scientifique (CNRS).
Nas primeiras páginas do livro, a paisagem da cidade futurista do filme Blade
Runner (1982) é comparada com os santuários coloniais de Teotihuacán. Ambas as
representações trazem imagens portadoras de sentidos ambíguos. Na cidade fictícia, as
fronteiras entre andróides e humanos apresentam-se indefiníveis em meio à confusão do
mundo maquinal. Nos santuários, imagens de santos em altares barrocos baralham-se
com ícones do mundo pré-colombiano. Assim, entre as imagens cinematográficas da
ficção científica e as imagens do passado colonial mexicano, o autor nos faz pensar
sobre a natureza híbrida das imagens do mundo contemporâneo. “A falsa imagem, a
réplica demasiado perfeita, mais real que o original, a criação demiúrgica e a violência assassina da destruição iconoclasta, a imagem portadora de história e de tempo, História, imagem e narrativas carregada de saberes inacessíveis” (p.14), são tópicos discutidos ao longo do livro pelo historiador.
Serge Gruzinski analisa uma série de discursos acerca das imagens sacras do
México colonial. Desde as primeiras décadas do século XVI, os colonizadores
empreenderam uma verdadeira guerra das imagens, na tentativa de substituir imagens
dos povos indígenas por ícones católicos. Contudo, em meio aos avanços das práticas
evangelizadoras, os religiosos introduziram na Nova Espanha “o essencial da imagem
no Ocidente” (p.135): imagem para recordar (“memória”); imagem enquanto
representação (“espelho”); e, imagem para ser assistida, comemorada (“espetáculo”).
Se, por um lado, a divulgação das imagens dos colonizadores é apresentada
enquanto dispositivo de dominação simbólica e real, por outro, agiu como impulso ao
processo de mistura cultural entre espanhóis e indígenas. Neste sentido, o autor se
coloca numa posição intermediária; sua narrativa não privilegia nem as conquistas da
civilização no Novo Mundo, tão pouco uma história dos “vencidos”, dos povos que
teriam desaparecido. Ao invés de reforçar a relação desigual e hierárquica entre
colonizadores e colonizados, são evidenciadas, através das imagens, as diversas nuanças das relações culturais no Novo Mundo. Portanto este livro contempla os estudos culturais sobre colonização na América espanhola, que tem como referência imediata A colonização do Imaginário. Inclusive, como aponta o autor, as referências bibliográficas gerais de A guerra das imagens estão incluídas no primeiro livro dos estudos culturais sobre o México espanhol.
O contato entre os dois mundos colocou em evidência distintas percepções do
real, diferentes imaginários, segundo Gruzinski. As percepções cristãs acerca do
sobrenatural passaram a conviver com outras representações do mundo dos espíritos.
Neste processo, as imagens indígenas, em específico os objetos de culto, foram alvo da censura, da incompreensão e da intolerância religiosa.
Serge Gruzinski em uma análise acurada dá a ver o movimento pelo qual
passaram as interpretações das imagens religiosas indígenas. Da “sensibilidade
etnográfica” – presente nos relatos de Cristóvão Colombo – a “domesticação do objeto”
– iniciada com Pedro Mártir, o autor nos mostra o processo móvel de significação das
imagens.
Nos relatos de Colombo os objetos de culto indígena eram denominados
“cémies”, que, da língua Taino, significava um objeto que tinha o poder de guardar as
memórias dos antepassados. Esta forma de tratamento preserva, segundo o autor, a
individualidade, a especificidade do artefato cultural que era descrito. Por outro lado, membros da igreja ou representantes do governo espanhol, preocupados mais com o
controle político e ideológico da colônia, passaram a tratar as imagens indígenas não
mais como artefatos raros, mas enquanto objetos de culto demoníaco. Nesse sentido, a
mudança discursiva acerca das imagens é lida como vestígio das transformações sócioculturais do México espanhol. O cémi, uma primeira apropriação das imagens
indígenas, dá lugar ao “ídolo”. Nesse deslocamento de sentido, do cémi ao ídolo, as
imagens indígenas perdem seu exotismo etnográfico e passam a representar uma
ameaça aos projetos colonial espanhol e expansionista católico. Iniciou-se assim a
negação e destruição de imagens indígenas (iconoclastia), ao mesmo tempo em que se
iniciou a produção e divulgação em massa das imagens eclesiásticas.
Gruzinski ao descrever a emergência e divulgação das imagens de santos
(esculturas, afrescos e pinturas) transfere para seu texto – de maneira intencional ou fortuita – uma sensação de cansaço, em função de uma narrativa carregada de imagens religiosas. Parece que a forma do texto está em sintonia com a história narrada. A seqüência de santos barrocos, que surge no texto, nos faz pensar no caráter repetitivo da divulgação de imagens barrocas. Uma “epidemia de imagens” (p.256), segundo o autor,invadiu o cotidiano mexicano como uma tentativa de domesticação dos sentidos. Por meio de imagens procurava-se influenciar os povos da Nova Espanha a agir de determinada maneira, mas se estava longe de um controle hegemônico sobre as práticas e representações de mundo. Do cémi ao ídolo encontramos ações que buscavam mapear, nomear, significar, condenar e substituir imagens; contudo, a guerra de imagens foi feita, sobretudo, de acomodações e adaptações.
Aqui nos aproximamos das categorias centrais de análise usadas pelo autor. Para
se opor a noção de “substituição”, Gruzinski utiliza os termos “sincretismo” e
“acomodação”, a fim de se fazer notar o processo de mistura cultural que se deu entre
espanhóis e indígenas. A identidade ambígua das imagens produzidas no México
colonial, aponta para uma história viva e movediça. “Desde o início da conquista
espanhola, imagens cristãs coexistiam com ídolos entre inúmeros idólatras” (p.93). Em
meio ao processo de circulação cultural, altares eram ornamentados com cruzes, santos
e “ídolos”, e, nos cultos as divisas entre magia e religião desapareciam. “O consumo de ervas ocorre ao pé dos altares domésticos, diante dos olhos da Virgem, de Cristo e dos santos que recebem a homenagem dos participantes, mestiços índios e mulatos” (p.233). Símbolos do catolicismo eram incorporados ao universo onírico originado pelo
consumo de alucinógenos (“peyotl”). As imagens barrocas, que se destacavam pela
riqueza decorativa, entravam na composição cênica de rituais religiosos que escapavam
do controle dos evangelizadores. Neste sentido as recepções que as imagens cristãs
tiveram no México colonial, são analisadas como práticas inventivas, nas palavras do
autor: “manobras de apropriação”.
A recepção das imagens cristãs no México colonial raramente se confunde
com uma adesão apática ou uma submissão passiva, apesar da eficácia e
supremacia do dispositivo barroco, apesar dos apoios institucionais, materiais
e socioculturais que garantem maciçamente sua perenidade e ubiqüidade. As
populações reagem às imagens por incessantes manobras de apropriação.
(p.240) Ao longo dos estudos sobre o processo de ocidentalização o conceito de
mestiçagem ganhou força, até a publicação, em 1999, do livro La pensée métisse1 (O
pensamento mestiço). Para que possamos entender o conceito de mestiçagem
desenvolvido pelo historiador francês, devemos levar em conta as misturas culturais
desencadeadas pelos encontros, choques, entre as diferentes sociedades indígenas e
européias. No livro acima citado o autor diferencia hibridismo de mestiçagem, enquanto a hibridação consiste nas misturas culturais em uma mesma civilização (dentro da Europa, por exemplo), a mestiçagem se deu entre sociedades díspares, que, no caso dos estudos do México espanhol, travaram contatos a partir do século XVI. Em meio aos (des)encontros surge uma cultura mestiça, constituída em uma “zona” onde idéias e artefatos novos e inusitados são criados. “Em face do mundo indígena do interior do país, enquadrado pelos religiosos e dizimado pelas epidemias, emerge uma sociedade nova, urbana, pluriétnica e européia que – como hoje a nossa – vivem diariamente a experiência das mestiçagens”. (p.137)
Por outro lado, por meio do movimento de circulação cultural percebemos
diferentes usos ou apropriações das imagens. A idéia de circulação e apropriação – que pode ser encontrada em Il formaggio e i vermi (O queijo e os vermes) de Carlos
Ginzburg, livro citado pelo autor – procura trabalhar com o conceito de cultura sob
uma perspectiva relacional. Sob influencia dos estudos antropológicos, a cultura aparece como resultante de relações complexas entre valores e crenças, mas também entre artefatos materiais e instituições. A mestiçagem é percebida, portanto, em meio a relações culturais (religiosas, econômicas, políticas) e de poder: da submissão à arma a sedução da imagem. A noção de mestiçagem, que havia sido trabalhada no começo do século XX por intelectuais como Gilberto Freyre, Sergio Buarque de Holanda e Mário de Andrade para se pensar uma cultura brasileira, ganha força nas análises de Serge Gruzinski sobre o passado colonial da América espanhola, e, nos faz refletir mais uma vez sobre identidade e cultura, tradição e modernidade, em um mundo cada vez mais conectado e saturado de informações visuais.
A guerra real da colonização empreendida no campo simbólico conferiu um
papel de destaque às imagens. Dadas as diferenças lingüísticas entre colonizadores e
indígenas e o baixo letramento da sociedade colonial, as imagens serviam, por um lado, como dispositivo à pedagogia de cristianização, e por outro como uma possibilidade de expressão e criação de “crenças que seria difícil ou perigoso verbalizar” (p.224).
Seja como parte do aparelho de evangelização, seja enquanto expressão do
imaginário popular, as imagens barrocas são identificadas enquanto formadoras de
vínculos sociais no México espanhol. Assim Gruzinski atribui à imagem barroca uma
“função unificadora num mundo cada vez mais mestiço, que mistura as procissões e
encenações oficiais a gama inesgotável de seus divertimentos”. (p.200) A Virgem de
Guadalupe é apresentada, por sua vez, como “a mais prodigiosa das imagens”,
catalisadora dos sentimentos coletivos. A Virgem representava a mãe sedutora “de pele
morena como aquelas amas-de-leite mestiças, indígenas e mulatas que cuidavam das
crianças espanholas em toda a colônia” (p.182). O autor, seguindo os discursos dos
promotores ligados aos processos de inquisições do Santo Ofício, cita o culto a imagem da Virgem como um “nacionalismo embrionário” (p.172).
A divulgação das imagens foi ampla e massificada. Seja em locais públicos, seja
nas esferas do privado. Serge Gruzinski nos leva a conhecer os múltiplos espaços
contaminados por valores estéticos ocidentais. A noção de perspectiva (presente em
pinturas de paisagens renascentistas) passou a fazer parte, por exemplo, das técnicas de “fidelidade da narração pictórica”, que, somando-se as “cores, o nu, o drapeado, a reprodução do rosto e dos cabelos” (p.158) compunham a pintura da Nova Espanha de qualidades estéticas do Ocidente. Os pintores do vice-reinado apenas foram
reconhecidos quando passaram a representar o mundo a partir dos cânones de uma arte
ocidental que privilegiava, entre outros temas, a “docilidade” e o “conformismo”
(p.160). Assim, a suntuosidade da beleza barroca, dos altares de Virgens e santos, era divulgada como forma de combate as imagens indecentes, feias e ridículas do mundo
pré-colombiano. Por sua vez, o autor apresenta a discussão estética sobre as imagens
religiosas em meio ao contexto da contra-reforma. As imagens indígenas foram vistas a
partir de um modelo iconográfico e no momento de lutas contra as heresias.
Portanto este livro privilegia as imagens e suas representações, percebidas
enquanto possibilidade de análise do enfrentamento cultural posto pela colonização. Por sua vez o texto utiliza as questões levantadas no passado para pensar a saturação de imagens no tempo presente. “A embrulhada das referências, a confusão dos registros étnicos e culturais, a superposição da vivência e da ficção, a difusão das drogas, a multiplicação dos suportes da imagem, fazem também dos imaginários barrocos da Nova Espanha uma prefiguração dos imaginários neobarrocos ou pós-modernos que são os nossos” (p.302). A confusão contemporânea, que mistura imagens religiosas a ícones do mundo capitalista televisivo, encontra suas primeiras referências nos sincretismos culturais do século XVI. Se os andróides do filme Blade Runner eram caçados porque não eram humanos, os índios do Novo Mundo, que não tinham alma, foram dizimados, conclui Serge Gruzinski, que nos faz pensar sobre a intolerância no passado e no presente com relação à diferença.

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