quarta-feira, 6 de maio de 2009
Excerto da minha dissertação de mestrado II (1991)
Por outro lado, compreender a cultura popular como leitura ou significado implica, entre outras coisas, tentar entendê-la a partir de seus próprios referenciais ou dos termos através dos quais os seus contemporâneos a entendiam. Em O Queijo e os Vermes, Ginzburg mostrou como a cultura de um moleiro friulano do século XVI podia ser tão complexa e interessante quanto a cultura erudita da época e que, no final das contas, estamos diante de modos diferentes de organizar e interpretar a realidade. Atribuir à cultura popular um sistema de significados próprios ajuda-nos a compreender uma velha lição da antropologia: os perigos do etnocentrismo. Vimos como a definição de cultura popular em Mandrou limita-se a um mero recorte social, como se o simples fato de uma pessoa pertencer aos “meios populares” constituísse prova irrefutável de que estamos diante e um legítimo representante da cultura popular. Entendida nestes termos, a cultura popular perde toda a sua especificidade e se transforma num conjunto de “cacos” da cultura erudita. Afinal, Mandrou só conseguiu ver na cultura popular um amontoado anacrônico das idéias superadas da cultura erudita medieval. Sua incapacidade de entender a cultura popular dos séculos XVII e XVIII deve-se à negação da idéia de cultura como um sistema coerente de significados. Privada de sentido, a cultura popular acaba por impor a necessidade da cultura erudita como referencial para ser compreendida. Daí o fato de Mandrou definí-la como “restos” da cultura erudita. Muitos autores já haviam chamado a atenção para a necessidade de se pensar as sociedades tradicionais como os antropólogos pensavam as sociedades primitivas e de se contrabandear para a história muitas das lições aprendidas por eles no trabalho de campo. Jacques Le Goff, Carlo Ginzburg e Robert Darnton são alguns dos autores que trilharam um caminho que poderia ser chamado de “antropologia histórica” ou “história antropológica”. Apesar de variações significativas, todos os três estão falando de coisas muito parecidas e são unânimes num ponto: o “outro” também está na história e é preciso aprender com a antropologia, que tem uma larga experiência nesta matéria, a lidar com a questão do etnocentrismo. Talvez a primeira constatação a ser feita pareça óbvia demais: os homens do passado são diferentes de nós. Robert Darnton formulou com brilhantismo esta idéia quando sublinhou que o passado não é o presente de perucas e sapatos de madeira (19). Para ele, o fundamental é recuperar o sentimento de choque cultural nas relações do historiador com o passado, para que não incorramos na impressão ingênua de que ele não nos reserva belos enigmas. Carlo Ginzburg, às voltas com o universo cultural dos camponeses do Friuli do século XVI, também adverte para o mesmo ponto quando afirma a necessidade da “reconstrução analítica da diferença” (20). De seu projeto faz parte “reconstruir a fisionomia, parcialmente obscurecida, de sua cultura e contexto social no qual ela se moldou”.
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