quarta-feira, 6 de maio de 2009

Excerto da minha dissertação de mestrado I (1991)

A proposta de Carlo Ginzburg em O Queijo e os Vermes é, a partir do processo movido pelo Santo Ofício contra o moleiro Menocchio, mostrar a existência de uma cultura popular comum aos camponeses do Friuli no século XVI. O eixo em torno do qual se desenvolve a análise de Ginzburg compõe-se de duas referências básicas: as obras efetivamente lidas pelo moleiro Menocchio e a sua leitura destas obras — apreendidas através de sua fala diante dos inquisidores. Ao longo do texto, Ginzburg mostra-nos que as palavras de Menocchio não se identificam às obras lidas por ele: à página escrita, o moleiro acrescenta novos elementos, reforçando algumas idéias, modificando outras, propondo novas metáforas, num processo dinâmico e criativo. Ginzburg chega a duas conclusões fundamentais: a primeira delas é a existência de uma cultura popular camponesa na região do Friuli no século XVI que se interpõe entre Menocchio e a página escrita; a segunda é a constatação de que os temas emergentes na fala de Menocchio aparecem também na produção intelectual mais sofisticada da época (15). Desta última conclusão, decorre uma outra: a cultura popular não se encontrava separada de forma rígida e estanque da cultura erudita. Se os temas são recorrentes, derrubando as tradicionais barreiras entre popular e erudito, é impossível falar numa superposição entre um e outro: a análise de Ginzburg mostra que é no processo de leitura — de interpretação ou atribuição de significados — que reside a especificidade da cultura popular. Assim, Carlo Ginzburg propõe não somente uma nova metodologia como também um novo conceito para a expressão `cultura popular'. Se toda uma vertente da história cultural privilegiou a concepção de cultura como um recorte social, operado em qualquer sociedade de acordo com a sua estratificação, e portanto de fácil localização, para Ginzburg, muito influenciado pela antropologia, o que realmente interessa é buscar significados. Ao contrário da metodologia imediata de Mandrou, ele se propõe a localizar na fala de um camponês a existência de um estrato cultural profundo através do confronto entre a página escrita da cultura erudita e a fala de Menocchio. Mais do que inventariar os temas recorrentes nesta fala, a sua proposta metodológica tem como objetivo perceber a forma através da qual um moleiro friulano do século XVI leu as páginas da cultura erudita e lhes conferiu um novo significado, de acordo com a sua tradição cultural e a sua experiência cotidiana. Para este autor, as trocas recíprocas entre a cultura popular e a cultura erudita não se operam de forma mecânica, como pura assimilação. A absorção de idéias da cultura erudita em Menocchio se faz através de uma leitura, de uma reinterpretação, sempre filtrada pela cultura popular. Entre um e outro, interagem “filtros que fazia [Menocchio] enfatizar certas passagens, enquanto ocultava outras, que exagerava o significado de uma palavra, isolando-a do contexto, que agia sobre a memória de Menocchio, deformando a leitura” (16).
Para Ginzburg então, o conceito de cultura popular não é um ponto de partida teórico, mas uma referência empírica a ser demonstrada. O objetivo de sua análise é justamente mostrar como se pode constatar a existência “empírica” da cultura popular. Através do confronto entre o conteúdo das obras lidas por Menocchio e o sentido que ele conferia a elas, o autor traz à tona um estrato profundo das tradições populares do Friuli no século XVI. O seu maior mérito é ter demonstrado que os temas — objeto central da análise de Mandrou — não são estanques, ou monopólio da cultura erudita — única sementeira de idéias e concepções. Devido à especificidade do século XVI — o advento da Reforma e a invenção da imprensa — os temas recorrentes na fala de Menocchio haviam transitado livremente entre o popular e o erudito. Assim, o que deve ser buscado numa cultura não são apenas os seus temas, mas também o significado que eles adquirem nela. Estes significados não são aleatórios: é a partir da experiência cotidiana de múltiplas tradições que a cultura cria uma rede de simbolismos complexos. É tarefa do historiador da cultura, portanto, a busca destes significados construídos pela cultura popular. É por isso que a metodologia de Ginzburg está muito próxima da de Darnton, que assume explicitamente a “exegese dos significados” como o procedimento através do qual o historiador pode penetrar na opacidade das visões de mundo de determinados grupos sociais, tornando-as compreensíveis para nós (17).
Grande parte da inspiração teórica de O queijo e os vermes deve-se à forma pela qual Bakhtin, analisando e interpretando a obra de Rabelais, reformulou categorias aparentemente desgastadas pelo uso. Para muitos historiadores, o binômio cultura popular/cultura erudita havia resumido extraordinariamente bem a problemática da cultura nas sociedades tradicionais. Ao reputar a obra de Rabelais — um autor erudito — como a chave de entendimento da cultura popular de seu tempo, Bakthin deu um passo considerável no sentido de romper a velha oposição “erudito-popular”. Isto não quer dizer que a sua abordagem despreze antagonismos e conflitos: ao contrário, Bakhtin pode ser considerado o autor que mais insistiu na idéia do popular como antagônico ao oficial (18). O universo que pulsa em suas páginas — o riso, o carnaval, as festas — contrasta imensamente com a seriedade e a sisudez da cultura oficial, afeita aos matizes cinzas e sombrios. Voltado para um contexto específico — a Idade Média e o Renascimento — ele chamou a atenção para a natureza relativa mente autônoma da cultura erudita em relação à cultura oficial. Até então, os pensadores e humanistas de gabinete eram vistos como participantes da cultura oficializada pelo Estado e pela Igreja e, enquanto tal, incumbiam-se de produzir e reproduzir esta cultura. Entender a obra de Rabelais pressupunha romper como a oposição erudito/popular e circunscrever com maior precisão a noção de oficial.
Com os olhos nas lições do mestre russo, Ginzburg voltou-se para o moleiro friulano e descobriu convergências, analogias e semelhanças entre a sua visão de mundo e o universo erudito dos setores mais sofisticados do século XVI, jogando por terra definitivamente a tese de que se tratavam de culturas estanques e irredutíveis entre si, separadas por uma diferença fundamental. O contexto histórico do século XVI, marcado pelas Reformas e pela invenção da imprensa — esta última responsável por um acesso mais fácil à cultura erudita — possibilitou a diluição destes limites e a conseqüente circulação de idéias entre elas.
Contrariamente ao procedimento de Bakhtin, que recorre constantemente à cultura oficial para traçar antagonismos e oposições, Ginzburg não utiliza, em momento algum, o termo “cultura oficial”. Apesar disso, a sua noção está presente o tempo todo nas disputas teológicas do moleiro Menocchio com os juízes e inquisidores — a sua resistência em não se amoldar às expectativas da Igreja, a sua visão crítica da religião e a pertinácia com que defendia suas opiniões tornaram este moleiro audacioso um “membro infectado do corpo de Cristo”, sobre o qual se inclinava o próprio papa para exigir a sua morte. O moleiro era o paradigma do mau cristão — daquele que não se submete às verdades de bispos, padres e teólogos.

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