quinta-feira, 14 de maio de 2009

Entrevista com Chartier

ENTREVISTA


http://www.editoraunesp.com.br/template/noticias_551.htm acessado em 26/08/2005
"Leitor também é autor"



Para o historiador do livro, a escrita ficou ainda mais importante no meio eletrônico
Entrevista com Roger Chartierpor Luciano Trigo

Historiador do livro e da leitura, Roger Chartier, em sua mais recente vinda ao Brasil, lançou seu livro "Leituras e Leitores na França do Antigo Regime". Na ocasião - fins de junho - voltou a ressaltar que o livro deverá sobreviver ao texto eletrônico, sobretudo no caso do romance folheado no ônibus, no metrô ou no avião. Mesmo portátil, um computador é um objeto bem menos amigável. No tocante a jornais e revistas, tanto o papel como a tela podem receber leituras complementares: uma, funcional, e a outra, mais profunda. Se a leitura está mudando, o leitor também passa por uma revolução: ao interferir no texto eletrônico, cortando-o ou ampliando-o, também é autor.

O GLOBO: O senhor passou da História do livro à História da leitura, do objeto ao leitor. O que determinou essa mudança de curso? ROGER CHARTIER: Durante muito tempo, os historiadores franceses deram respostas ruins a perguntas boas. Foi assim que, para estudar a leitura num tempo e num espaço determinados, tentaram reconstruir, por um lado, as conjunturas da produção do livro, e, por outro, a composição das bibliotecas particulares. Ou seja, era o primado das fontes administrativas e da abordagem estatística. Os resultados foram, às vezes, espetaculares, mas inúteis para analisar as letras, entendidas como a significação dada pelos leitores aos textos que eles recebem ou dos quais se apropriam, e que não são somente livros. Era preciso recorrer a outras fontes, que permitissem reconstituir as convenções e os hábitos de leitura das comunidades e, também, as leituras singulares de indivíduos particulares.

GLOBO: Existe uma crise da leitura? A morte do leitor e o desaparecimento da leitura serão conseqüências do triunfo da imagem?
CHARTIER: Não creio que se possa falar de uma crise da leitura como resultado da comunicação eletrônica. As telas do passado eram telas de imagens, como no cinema e na televisão, e McLuhan as contrapunha à Galáxia de Gutenberg, à civilização escrita. Mas as novas telas do presente são telas de texto, por assim dizer. Elas transmitem imagens, acompanhadas ou não de som, mas apresentam sobretudo um predomínio da escrita, em todas as suas funções: epistolar, documentária, didática, literária etc. O verdadeiro problema não é portanto o da suposta desaparição da escrita, mas os efeitos de um novo modo de escrever, na tela do computador, e de uma nova maneira, de ler, fragmentada, descontínua, hipertextual, sobre as categorias e práticas que, até aqui, comandavam a nossa relação com a escrita.

GLOBO: Nesse novo contexto, muda também o estatuto do autor? Como isso afeta a leitura?
CHARTIER: É certo que a comunicação eletrônica dá aos textos uma maleabilidade e uma abertura desconhecidas anteriormente. Ao decupar, transformar, deslocar o texto, o leitor se torna ele próprio autor, ou antes um dos interventores dentro de um processo ininterrupto e coletivo de uma escritura polifônica. Alguns autores, como Michel Foucault, sonharam com as possibilidades abertas por uma escritura sem autor, onde cada um participa anonimamente. O texto eletrônico dá uma realidade possível a esse sonho. Mas, evidentemente, o apagamento do autor confunde as categorias jurídicas, como propriedade literária, direitos autorais e copy-right, e estéticas, como a idéia de obra como criação pessoal, singular e original, que governam a produção escrita. Daí surgirem numerosos processos que visam a restaurar a proteção dos direitos de propriedade sobre a escritura, e também sobre as imagens e os sons, no mundo eletrônico. Daí, também, a procura por dispositivos tecnológicos que impedem a cópia ou a alteração dos textos, salvaguardando assim os direitos dos autores e editores. As edições eletrôncias de revistas científicas que impõem um acesso pago e controlado são um caso sintomático.
GLOBO: Está em curso uma revolução? O livro eletrônico vai substituir o livro convencional?
CHARTIER: Alguém já disse, em tom de brincadeira, que se o livro impresso tivesse sido inventado depois do computador, seria considerado um grande progresso. É certo que, para as obras cuja própria natureza implica uma leitura fragmentada e descontínua, como as enciclopédias e dicionários, a textualidade numérica oferece vantagens consideráveis: rapidez na pesquisa, multiplicação dos laços hipertextuais, atualização dos dados. Daí a escolha feita por muitas enciclopédias, como a Encyclopedia Britannica e Encyclopedia Universalis, a favor da edição eletrônica. Mas para outros gêneros, como romances, ensaios e livros científicos, que implicam uma percepção da obra na sua totalidade, identidade e coerência, não me parece que o formato eletrônico satisfaça o leitor. Pode acontecer de alguém só ler algumas páginas de um livro impresso, mas a própria materialidade do objeto impõe ao leitor a presença do texto integral e a identificação da obra como tal. Decorrem daí, pelo menos na França, as dificuldades e os fracassos dos editores que se aventuraram nesse mercado do livro eletrônico. O caso dos jornais e revistas é mais complexo, porque a sua dupla leitura, na página e na tela do computador, não segue uma mesma lógica. A leitura do formato eletrônico é temática, hierarquizada, e se lê um artigo sem necessariamente saber de que tratam os outros artigos publicados no mesmo número. A leitura do objeto impresso é bem diferente. Ela constrói o sentido de cada artigo e do conjunto do jornal a partir da presença de diferentes elementos textuais, como artigos, editoriais e publicidade, num mesmo objeto tipográfico. Daí a dupla publicação do "mesmo" jornal, para responder a necessidades diferentes.

GLOBO: Quais seriam as diferenças entre a leitura do texto na tela e no papel e o que elas podem implicar?
CHARTIER: Deve-se evitar o discurso de nostalgia criado pela suposta perda de objetos familiares, mas às vezes é difícil evitar esse risco. O importante é reconhecer em quê duas formas tão diferentes de inscrição, comunicação e recepção dos textos modificam as nossas práticas de leitor e nossa maneira de construir a significação dos textos que lemos. O exemplo dos jornais permite compreender bem as duas lógicas, a analítica e a espacial, que governam a apropriação dos "mesmos" artigos. O contraste entre o livro que carregamos conosco, familiar, que pode ser lido na rua, no ônibus ou no metrô, e o computador, mesmo portátil, indica duas relações corporais muito diferentes com o texto. De um lado, a proximidade do objeto, folheado, anotado, disponível. De outro, a mediação do teclado, o peso do aparelho, o desconforto da leitura. Para um romance ou livro de História, o e-book não é o substituto do livro de bolso. GLOBO: Crê que o destino do livro será inseparável do destino do hipertexto? Fale mais sobre o impacto do texto eletrônico na concepção e na transmissão da informação. CHARTIER: Sua questão conduz a um equilíbrio feliz do meu julgamento. De fato os recursos do hipertexto permitem pensar em novos modos de construção de argumentações e de conhecimentos, ao mesmo tempo que proporcionam aos leitores possibilidades inéditas de controle. De um lado, o autor pode construir suas demonstrações segundo uma lógica que não é mais necessariamente linear, podendo introduzir, a qualquer momento, referências e documentos. De outro, o leitor não é obrigado a dar crédito ao autor, já que ele pode conferir os documentos que foram objetos de trabalho de pesquisa e refazer todo o percurso da pesquisa. Tome-se como exemplo um livro de História. No livro impresso o leitor tem que confiar no historiador, já que é impossível consultar os documentos e textos analisados. No hipertexto, ele pode ler o que o historiador leu e assim fazer seu próprio julgamento sobre as conclusões que ele tirou. Ocorre uma transformação profunda nos critérios da prova. Mas há um risco nesse novo mundo textual, que é o de confundir conhecimento com informação. A textualidade eletrônica, livre, gratuita, na qual cada um pode abrir um site, multiplica as opiniões, os erros e as falsificações. É preciso, portanto, refletir sobre meios que possam indicar ao leitor que autoridade que pode atribuir com razoável segurança a este ou aquele website, banco de dados ou revista eletrônica. Se não, há um risco grande de se considerar verdadeiro tudo o que for acessível na rede, já que tudo aparece de uma forma parecida e sobre um mesmo suporte, a tela do computador.

GLOBO: De que maneira a Internet pode mudar o conceito de propriedade intelectual? CHARTIER: Os textos instáveis, maleáveis e polifônicos da textualidade eletrônica lançam um grande desafio às categorias jurídicas que definem a propriedade literária, que apareceram no século XVIII. A única forma de tornar as coisas mais claras será uma distinção mais nítida entre a comunicação eletrônica livre e gratuita, à margem do princípio dos direitos autorais, e a publicação eletrônica, que pressupõe, como todas as outras formas de publicação, a proteção dos direitos do autor e do editor. E também a fixação da identidade do texto, para impedir apropriações indevidas.

GLOBO: Mas o livro continuará existindo?
CHARTIER: Os historiadores já se enganaram tantas vezes ao profetizar o futuro que eu prefiro ser prudente. Suponho que o livro impresso do futuro tentará assimilar algumas inovações propostas pelo texto eletrônico e permitirá, à sua maneira, uma leitura hipertextual e multimídia. Até aqui foi o mundo eletrônico que se esforçou para não confundir demais o leitor, adaptando ao seu formato o léxico da impressão. Mas o inverso pode acontecer no futuro.

GLOBO: O que o senhor pensa da definição do jornalista como um historiador do presente? CHARTIER: Alguns historiadores talvez tenham sonhado em ser os jornalistas do passado. Buscaram uma forma de escrever menos acadêmica e mais suscetível de seduzir um grande número de leitores. Existe, porém, uma distância muito grande em relação aos fatos, aos critérios de prova e de validação das informações, mesmo que tanto o jornalista quanto o historiador trabalhem com a pesquisa, o rigor e a objetividade. A diferença entre os dois reside fundamentalmente no fato de que a pesquisa histórica exige um longo tempo, enquanto o jornalismo implica urgência na apuração. GLOBO: A revolução eletrônica pode aprofundar desigualdades e provocar um novo "iletrismo"?
CHARTIER: Esse risco é imenso. Em 2001, cerca de 50% dos endereços eletrônicos eram dos países anglófonos. Contrariamente ao que sugerem os discursos técnicos e utópicos, o mundo eletrônico não representa, em si mesmo, uma promessa de universalidade, pois o seu acesso pressupõe um custo econômico e uma competência cultural. Daí o risco que você assinala, de um novo iletrismo, caracterizado não pela ignorância da leitura e da escrita, mas pela exclusão de uma nova modalidade da comunicação. É preciso lembrar essa ameaça para que não se confunda o virtual com o real. Virtualmente, a rede pode concretizar o sonho do Iluminismo, segundo o qual cada um pode e deve ser ao mesmo tempo leitor e autor, contribuindo com seu julgamento para a constituição de um espaço público e crítico. Mas este sonho está longe de ser realizado. Na escala do planeta ou de cada país, o uso diferenciado do meio eletrônico reforça as desigualdades. O governo precisa inverter essa tendência, por meio das escolas e bibliotecas, para que todos sejam cidadãos do novo mundo eletrônico.
GLOBO: O computador e suas imagens podem afetar negativamente o ato da leitura?
CHARTIER: As imagens podem matar o imaginário, que pressupõe que o leitor possa formar a seu critério as representações sugeridas pelo texto. Nesse sentido, o excesso de imagens do nosso tempo não leva necessariamente a um exercício mais denso ou mais intenso da imaginação. É claro que um novo tipo de relação pode ser instaurado entre textos, imagens fixas ou móveis e músicas, graças à tecnologia multimídia. E a criação estética pode ser enriquecida por novas energias. "Dom Quixote", publicado em 1605, mesmo sem comportar nenhuma ilustração ou imagem, continua a fazer os leitores sonharem, percorrendo caminhos poeirentos de la Mancha com dois companheiros que só têm uma existência de papel.

Luciano Trigo é Coordenador Geral do Livro e da Leitura da Biblioteca Nacional.Publicado no jornal "O GLOBO", no dia 10/7/2004 - Seção Prosa & Verso - página 6

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