Os processos de ocidentalização, globalização e mestiçagens não se iniciaram a partir do século XV. Se o historiador olhar para o passado, encontrará os romanos espalhados pela Europa, Ásia e África, desbravando terras e mares. Na Idade Média, homens como Marco Polo chegaram a China e encontraram aí uma cultura completamente diferente da ocidental. Todas as culturas são mestiças: as mestiçagens ocorrem em níveis diferentes, muitas vezes apenas no âmbito local, de modo que a história da humanidade é a história de mestiçagens de toda sorte: biológica e cultural também. Há que se considerar alguns aspectos:
1.) As mestiçagens se processam necessariamente no interior de relações de poder e dominação. Não são, portanto, assépticas ou neutras, mas trazem a marca do conflito, e são, por isso mesmo, políticas.
2.) As culturas não são jamais sistemas fechados, estáveis ou coerentes. As mestiçagens operam assim entre culturas já mestiças, adaptadas às zonas de contato. É importante sondar como as culturas em foco carregam em seu bojo a experiência destes diálogos, uma vez que a própria mestiçagem é histórica do ponto de vista das culturas envolvidas. Noutras palavras, as reações aos contatos culturais são determinadas pela experiência deles no passado, predispondo ou não a assimilação do outro.
3.) A assimilação da cultura do outro, no contexto da alteridade, ocorre em condições e circunstâncias, segundo ritmos e tempos, que não são lineares. Compete ao historiador focalizar as particularidades destas mélanges.
4.) Assimilar significa re-significar: Ovídio na tapeçaria asteca é um outro Ovídio, reinventado no confronto das culturas.
5.) Sincretismo é um conceito que circula há mais de um século entre os historiadores da cultura. Lembram-se de Gilberto Freyre e do seu universo mestiço ? Pois bem, a idéia de uma aculturação impositiva e triunfante está completamente superada pelos estudiosos há muito tempo. Neste sentido, cabe indagar então a originalidade dos conceitos forjados por Gruzinski.
6.) Constatar mestiçagens não me parece suficiente. Os desdobramentos mais duvidosos do recurso generalizado aos conceitos gruzinskianos consistem em apontar os resultados da mestiçagem, contentando-se tão-somente em apontá-los, sem considerar os contextos complexos em que ocorrem. Mostrar que um objeto ou uma prática é mestiço pouco ou nada redunda em termos da interpretação histórica.
7.) Haveria um método gruzinskiano ? Se existe, ele é o da micro-história ou do estudo de caso. Análises particularizadas, centradas em contextos específicos, em escala pequena, são infinitamente mais eficientes porque iluminam casos pontuais, capazes de evidenciar os processos em plena ação.
8.) É preciso insistir mais uma vez que os contatos culturais ocorrem sempre no interior de formas de dominação, revestindo-se de uma conotação política, essencial para a seleção daquilo que é ou não assimilável. Mestiçagens culturais são, antes de tudo, mestiçagens políticas.
9.) Finalmente, o historiador não pode perder de vista a percepção dos agentes históricos envolvidos nos processos de contato cultural, interrogando-os sobre o sentido de sua experiência. Por trás de artefatos mestiços, existem histórias intrincadas que compete ao historiador desvelar. Afinal, o que pensa um índio mexicano que constrói uma catedral barroca a respeito daquilo que faz ?
quinta-feira, 28 de maio de 2009
Notas bem introdutórias sobre a obra de Gruzinski
Foco do trabalho de Gruzinski
- o foco do autor são os contatos culturais estabelecidos a partir do século XV. Seu objetivo é buscar os processos culturais que resultaram em mestiçagens, unindo lugares e culturais diferentes. Trata-se de pensar a aculturação como fator de união e não de ruptura. É na zona de penumbra, entre a sombra e a luz, que o olhar de Gruzinski flagra os intermediários culturais. Tais processos são inseparáveis da globalização ocorrida a partir do século XV, que instaura espaços de circulações, intercâmbios e conflitos.
- Debate teórico: posiciona-se contrário a análises dualistas, que pensam a aculturação como um processo de mão única, porque postula a autonomia, a invenção e a reação como dispositivos postos em ação pelas culturas.
- Palavras-chave: circulação, trânsito, mediação, conexões.
- Proposta metodológica: estudos de caso, micro-história.
Conceitos em Gruzinski
Mundializacao: expansionismo planetário, ocorrido a partir do século XV, ampliando a escala geográfica do mundo conhecido, colocando em contato culturas e civilizações até então estanques, diminuindo as distancias e promovendo a circulação em nível global de homens, idéias e objetos. O local torna-se global.
Ocidentalização: processo de dominação cultural empreendida pela Europa, a partir do século XV, que visa a difusão dos valores e tradições culturais ocidentais. A ocidentalização resulta em mestiçagens. Implica necessariamente confronto.
Mestiçagens: processo de mescla cultural, que pode ser empreendido como uma estratégia de dominação ou como estratégia de adaptação ou sobrevivência à imposição européia.
Globalização: fenômeno pelo qual as idéias e formas (ligadas à cultura erudita) se desenvolvem sem qualquer consideração à especificidade das culturas locais. Recusa o confronto, porque ignora a diferença local.
Passeurs culturelles: agentes situados entre duas ou mais culturas diferentes, promovendo a mediação entre elas.
Connected histories: ligações históricas existentes entre mundos, pessoas, objetos, idéias e tradições, situados em partes diferentes do globo, indicando elos comuns.
Hibridação: mestiçagens ocorridas no interior de um mesmo conjunto cultural.
Culturas mestiças: só alcançam a Europa sob o apelo do exotismo, ou se neutralizadas politicamente.
Gruzinski e o político: “parece-me que o termo ‘mestiçagem cultural’ é pouco como uma armadilha, uma vez que as mestiçagens são sempre políticas”.
- o foco do autor são os contatos culturais estabelecidos a partir do século XV. Seu objetivo é buscar os processos culturais que resultaram em mestiçagens, unindo lugares e culturais diferentes. Trata-se de pensar a aculturação como fator de união e não de ruptura. É na zona de penumbra, entre a sombra e a luz, que o olhar de Gruzinski flagra os intermediários culturais. Tais processos são inseparáveis da globalização ocorrida a partir do século XV, que instaura espaços de circulações, intercâmbios e conflitos.
- Debate teórico: posiciona-se contrário a análises dualistas, que pensam a aculturação como um processo de mão única, porque postula a autonomia, a invenção e a reação como dispositivos postos em ação pelas culturas.
- Palavras-chave: circulação, trânsito, mediação, conexões.
- Proposta metodológica: estudos de caso, micro-história.
Conceitos em Gruzinski
Mundializacao: expansionismo planetário, ocorrido a partir do século XV, ampliando a escala geográfica do mundo conhecido, colocando em contato culturas e civilizações até então estanques, diminuindo as distancias e promovendo a circulação em nível global de homens, idéias e objetos. O local torna-se global.
Ocidentalização: processo de dominação cultural empreendida pela Europa, a partir do século XV, que visa a difusão dos valores e tradições culturais ocidentais. A ocidentalização resulta em mestiçagens. Implica necessariamente confronto.
Mestiçagens: processo de mescla cultural, que pode ser empreendido como uma estratégia de dominação ou como estratégia de adaptação ou sobrevivência à imposição européia.
Globalização: fenômeno pelo qual as idéias e formas (ligadas à cultura erudita) se desenvolvem sem qualquer consideração à especificidade das culturas locais. Recusa o confronto, porque ignora a diferença local.
Passeurs culturelles: agentes situados entre duas ou mais culturas diferentes, promovendo a mediação entre elas.
Connected histories: ligações históricas existentes entre mundos, pessoas, objetos, idéias e tradições, situados em partes diferentes do globo, indicando elos comuns.
Hibridação: mestiçagens ocorridas no interior de um mesmo conjunto cultural.
Culturas mestiças: só alcançam a Europa sob o apelo do exotismo, ou se neutralizadas politicamente.
Gruzinski e o político: “parece-me que o termo ‘mestiçagem cultural’ é pouco como uma armadilha, uma vez que as mestiçagens são sempre políticas”.
Dicas sobre a obra de Gruzinski
http://pphp.uol.com.br/tropico/html/textos/3007,1.shl
http://nuevomundo.revues.org/index295.html
http://cerma.ehess.fr/document.php?id=155
Para a exposição, da qual ele é curador, Planeta Mestiço:
http://www.quaibranly.fr/fr/programmation/expositions/a-l-affiche/planete-metisse-to-mix-or-not-to-mix/index.html
http://nuevomundo.revues.org/index295.html
http://cerma.ehess.fr/document.php?id=155
Para a exposição, da qual ele é curador, Planeta Mestiço:
http://www.quaibranly.fr/fr/programmation/expositions/a-l-affiche/planete-metisse-to-mix-or-not-to-mix/index.html
Resenha do livro de Gruzinski II: O pensamento mestiço
Gruzinski, Serge.
O pensamento mestiço.
Antonio Carlos Amador Gil
Universidade Federal do Espírito Santo
Revista Brasileira de História. São Paulo, v. 22, nº 44, pp. 549-553 2002
Neste seu novo livro, Serge Gruzinski, historiador francês, diretor de pesquisa
do Centre Nacional de la Recherche Cientifique (CNRS) e diretor de
estudos na École des Hautes Études em Sciences Sociales (EHESS), comenta
em suas páginas iniciais a experiência precursora de Aby Warburg, um famoso
historiador da arte de inícios do século XX.Warburg, imbuído de um olhar
antropológico, descobrira um vínculo entre a cultura dos índios hopis do Novo
México e a civilização do Renascimento. Gruzinski também se volta para
esta relação, pois um dos objetivos centrais deste seu novo livro é observar
como os povos ameríndios da segunda metade do século XVI, estão impregnados
de diversos elementos europeus e vice-versa. Ou seja, se trataria de fato
do estudo de culturas mestiças.
Gruzinski, ao abordar este tema, faz sempre uma ponte com o presente.
Afinal, vivemos ainda mais radicalmente hoje as influências do processo de
mundialização que se iniciou com a expansão européia no século XVI. Da
Amazônia a Hong Kong vivemos em mundos mesclados, onde temos que nos
esforçar para juntar os fragmentos que nos chegam por todas as partes, hoje
em escala planetária. Nossas práticas atuais foram inauguradas no México do
Renascimento (p. 90). A narrativa de Gruzinski demonstra que o arcaico é
um engodo e que estamos profundamente contaminados pela modernidade.
Sua epígrafe retirada de Mário de Andrade: “Sou um tupi tangendo um alaúde”,
que também encerra o seu livro, exprime de maneira simbólica o que o
autor irá demonstrar em todo o decorrer do livro. Vários traços característicos
das sociedades analisadas, no caso, as sociedades indígenas da América
Espanhola do século XVI, provêm da Península Ibérica e da Itália do Renascimento
e não do distante passado pré-hispânico. O fenômeno da mestiçagem
manobra com um número muito grande de variáveis que muitas vezes
fogem à percepção dos historiadores. Além da grande complexidade das mestiçagens,
o autor demonstra que havia e ainda há uma grande desconfiança
em relação ao tema. Gruzinski estende a sua crítica aos antropólogos amantes
de arcaísmos e de “sociedades frias” ou de tradições autênticas. Gruzinski
certamente, ao escolher o título de seu livro, quer marcar sua distância do au-
tor de “O pensamento selvagem”. Em seu primeiro capítulo, de fato, critica a
antropologia estruturalista por ter desprezado a importância dos processos
de recomposição permanente, privilegiando por sua vez as totalidades coerentes,
estáveis e com contornos tangíveis. A todos que ignoram os efeitos da
colonização ocidental e as reações que se desencadearam, o autor acusa de
ocultadores da história, sem a qual é impossível conhecer a profundidade essencial
desse processo.
Gruzinski tem a preocupação de tentar definir o que seria o conceito de
mestiçagem. Tarefa difícil na medida em que os termos “mistura”, “mestiçagem”
e “sincretismo” são carregados de diversas conotações e a priori (p. 42).
Gruzinski alerta que a compreensão do termo choca-se com os hábitos intelectuais
que preferem os conjuntos monolíticos e os clichês e estereótipos em
vez dos espaços intermediários (p. 48). Alerta também para as ciladas que se
impõem quando se utilizam os conceitos de cultura ou identidade. Neste sentido,
o autor critica aos que “evocam a existência de uma ‘América Barroca’
ou uma ‘economia do Antigo Regime’ como se pudesse se tratar de realidades
homogêneas e coerentes, das quais só restasse estabelecer os traços originais”
(p. 54). Ou seja, Gruzinski adverte que para analisarmos as mestiçagens, nós,
historiadores, precisamos “submeter nossas ferramentas de ofício a uma crítica
severa e reexaminar as categorias canônicas que organizam, condicionam
e, com freqüência, compartimentam as nossas pesquisas” (p. 55). Na análise
que Gruzinski se propõe, emprega o termo “mestiçagem” para designar as
misturas que ocorreram em solo americano no século XVI entre seres humanos
imaginários e formas de vida, vindos de quatro continentes, América, Europa,
África e Ásia. Já o termo “hibridação” é utilizado por Gruzinski na análise
das misturas que se desenvolvem dentro de uma mesma civilização ou de
um mesmo conjunto histórico (p. 62).
Ao analisar o momento da conquista, Gruzinski relembra que a chegada
dos europeus gerou altas turbulências e foi sinônimo de desordem e caos, e
que sem esta noção em mente não podemos compreender a evolução da colonização
e as misturas provocadas pela conquista (p. 73). Surgiram o que o autor
chama de “zonas estranhas” onde a improvisação venceu a norma e o costume,
ou seja, os vínculos que ligaram os espanhóis e as populações ameríndias
foram profundamente marcados por indeterminações, precariedades e improvisações.
Havia um déficit constante nas trocas que se estabeleciam, visto que
se relacionavam fragmentos e estilhaços da Europa, da América e da África.
Além do impacto da conquista, Gruzinski desenvolve em um de seus capítulos
outro processo que considera importante na formação das mestiçagens na
América Espanhola: a ocidentalização. Ela operou a transferência para o nosso
lado do Atlântico dos imaginários e das instituições do Velho Mundo (p.
94). Um dos elos essenciais dessa ocidentalização foi a cristianização.
Ao considerar o processo de ocidentalização, Gruzinski passa a abordar
a cópia indígena. Fruto da demanda de uma clientela espanhola ou indígena,
ávida por objetos de estilo europeu, a reprodução indígena, ou melhor, a noção
de cópia acabou por se revelar extremamente elástica. Gruzinski demonstra
que a concepção européia de reprodução deixava um campo considerável
à interpretação e à invenção. Neste ponto, o autor começa a analisar o que
consideramos o cerne deste seu novo livro: as mestiçagens da imagem.
De uma forma bastante criativa, Gruzinski, ao analisar os frisos do desfile
das Sibilas que se encontram na “Casa do Decano” em Puebla ou os afrescos
que enfeitam a igreja agostiniana de Ixmiquilpan, foge dos esquematismos
e clichês construídos em relação aos índios da América, que sempre se
referem aos esplendores das civilizações pré-colombianas ou à decadência
inapelável que teria se sucedido (p. 131). Gruzinski demonstra que os indígenas,
que pintaram as imagens analisadas, se inspiraram nas obras de Ovídio,
principalmente em “As metamorfoses”, e adaptaram motivos clássicos de modo
a dar às cenas indígenas um aspecto antigo. Gruzinski acredita que a razão
para tantos esforços em unir os motivos ovidianos e indígenas seria maquiar
as inúmeras reminiscências pagãs cujas conseqüências reflexivas
poderiam assim estar fora do alcance de um espírito europeu.
Gruzinski direciona o nosso olhar para um espaço ornamental — os frisos.
Seriam estes espaços um local dedicado às frivolidades da decoração, aos
efeitos superficiais e ao culto do pormenor? Gruzinski afirma que é preciso
reconsiderar o papel das margens e do ornamento na arte européia e a devolver
a esses espaços o papel e o significado que lhes cabem. Gruzinski também
põe em relevo a importância do maneirismo na proliferação do gosto pelo
bizarro, pelos fenômenos estranhos e monstruosos, que influenciou o uso dos
grotescos europeus pelos artistas mexicanos — os tlacuilos. Os grotescos revelam
o gosto da época pelos arabescos e bestiários fantásticos. Em sua análise,
Gruzinski demonstra que os grotescos permitiram a troca entre dois mundos
— o indígena e o europeu. Neste sentido, o autor se volta para este objeto
tão pouco estudado mas essencial para o processo de localização de engrenagens
e processos de mestiçagem. Os grotescos europeus, ainda que explorem
tendências decorativas, privilegiam metamorfoses e hibridações que estão
presentes no pensamento do Renascimento. A contribuição de Gruzinski se
dá pelo fato de constatar que a hibridação presente nas gravuras analisadas se
transforma, em solo mexicano, em mestiçagens, uma vez que houve naquele
momento um alargamento gigantesco de horizontes (p. 193). Cabe ressaltar
que Gruzinski, em relação ao seu conceito de mestiçagem, não trabalha com
a idéia de choque, justaposição, substituição ou mascaramento. O autor considera
que o processo resultante da mestiçagem não é um puro produto dos
meios que o engendraram.Neste sentido, o autor prefere trabalhar com a idéia
de “atraidor” que à maneira de um ímã permite ajustar entre si peças díspares,
reorganizando-as e dando-lhes um sentido (p. 197). Ou seja, ao unir concepções
diversas, o atraidor possibilita a expressão de um pensamento mestiço,
como podemos ver nos afrescos indígenas, no mapa-paisagem da cidade
de Cholula ou nos cantares indígenas mexicanos.
Gruzinski se apropria da expressão “culture of disappearance” utilizada
pelo sociólogo Ackbar Abbas, que analisa a situação de Hong Kong no último
decênio do século XX (p. 315). Gruzinski considera míopes os que reduziram
o passado do México a uma história de massacres e destruições, e que por
muito tempo ignoraram ou fizeram desaparecer as formas singulares do Renascimento
indígena (p. 316). Os nobres mexicanos, para evitar serem assimilados
ou reabsorvidos, tiveram que aprender a “sobreviver a uma cultura
de desaparecimento” adotando estratégias para tirar partido de mutações,
evitando a hispanização pura e simples (p. 316). Portanto, o autor de uma
maneira bastante feliz descarta as ciladas da marginalidade que apenas consolida
o centro, assim como escapa às ilusões do local, percebido de forma
ideal como um porto seguro que teria conservado a antiga pureza (p. 317).
Gruzinski, o tempo todo, nos alerta que o conjunto de componentes extremamente
diversos como os pictogramas, os grotescos, as fábulas antigas, os
cromatismos, os efeitos luminosos, frutos do encontro e do enfrentamento,
não de duas culturas, mas do que ele chama “dois modos de expressão e comunicação”
(p. 273), pertencem a um espaço novo, a uma “zona estranha” (p.
243), cuja compreensão depende da invenção de novos procedimentos de
análise.
Os artistas da cidade do México no século XVI, assim como os cineastas
de Hong Kong, segundo o autor, elaboraram novas práticas da imagem, ao
mesmo tempo que desestabilizaram e distorceram os gêneros, sejam eles os
grotescos do Renascimento, os velhos cantares ameríndios ou os filmes de
kung-fu (p. 319).
Este livro de Gruzinski, além de ser uma obra de grande erudição, também
é uma lição de método. A nós, historiadores, propõe que estejamos atentos
à interdisciplinaridade e a todas as formas de expressão que permitam um
enriquecimento das formas de análise de nosso objeto de estudo. Como disse
anteriormente, Gruzinski faz diversas pontes com o presente. O seu estudo
do México espanhol após a conquista não impede que analise certas questões
contemporâneas como a mundialização, a “World Culture” e a influência cada
vez mais predominante dos Estados Unidos. Gruzinski, por exemplo, analisa
em seu livro os filmes de Peter Greenaway “Prospero´s Books” e “The Pillow
Book”, e o cinema do diretor Wong Kar-wai procedente de Hong Kong.
Um dos filmes de Wong Kar-wai, “Happy Together”, que narra as peripécias
de dois chineses em Buenos Aires, dá título a sua conclusão. Ao analisar este
filme, Gruzinski, através do olhar do diretor, expõe a força das mestiçagens
num mundo onde imperam os fluxos de informação e poder do capitalismo
em nível mundial.
Gruzinski está atento à complexidade do tema na medida em que realça
os limites que uma mistura pode alcançar, uma vez que pode se transformar
em uma nova realidade ou adquirir uma autonomia imprevista. Portanto, o
autor sugere que o estudo destes limites com suas conseqüências para o fenômeno
da mestiçagem está sendo reservado para um livro futuro. Nele, talvez
o autor possa nos mostrar algo que ainda não foi abordado neste livro. Qual
será o lugar da cultura mestiça neste processo de mundialização engendrado
em escala planetária pelo capitalismo? Gruzinski já demonstrou a impossibilidade
do retorno ao passado, do despertar das culturas submetidas. Restanos
indagar se a cultura mestiça se manterá refém dentro dos limites da tradição
ocidental ou se permitirá o surgimento de algo novo que romperá com
a lógica do sistema de dominação atualmente vigente.
Certamente o leitor que se dispuser a ler “O Pensamento Mestiço” de Serge
Gruzinski, não se decepcionará e poderá se deixar levar pelo prazer de descobrir
uma outra América.
O pensamento mestiço.
Antonio Carlos Amador Gil
Universidade Federal do Espírito Santo
Revista Brasileira de História. São Paulo, v. 22, nº 44, pp. 549-553 2002
Neste seu novo livro, Serge Gruzinski, historiador francês, diretor de pesquisa
do Centre Nacional de la Recherche Cientifique (CNRS) e diretor de
estudos na École des Hautes Études em Sciences Sociales (EHESS), comenta
em suas páginas iniciais a experiência precursora de Aby Warburg, um famoso
historiador da arte de inícios do século XX.Warburg, imbuído de um olhar
antropológico, descobrira um vínculo entre a cultura dos índios hopis do Novo
México e a civilização do Renascimento. Gruzinski também se volta para
esta relação, pois um dos objetivos centrais deste seu novo livro é observar
como os povos ameríndios da segunda metade do século XVI, estão impregnados
de diversos elementos europeus e vice-versa. Ou seja, se trataria de fato
do estudo de culturas mestiças.
Gruzinski, ao abordar este tema, faz sempre uma ponte com o presente.
Afinal, vivemos ainda mais radicalmente hoje as influências do processo de
mundialização que se iniciou com a expansão européia no século XVI. Da
Amazônia a Hong Kong vivemos em mundos mesclados, onde temos que nos
esforçar para juntar os fragmentos que nos chegam por todas as partes, hoje
em escala planetária. Nossas práticas atuais foram inauguradas no México do
Renascimento (p. 90). A narrativa de Gruzinski demonstra que o arcaico é
um engodo e que estamos profundamente contaminados pela modernidade.
Sua epígrafe retirada de Mário de Andrade: “Sou um tupi tangendo um alaúde”,
que também encerra o seu livro, exprime de maneira simbólica o que o
autor irá demonstrar em todo o decorrer do livro. Vários traços característicos
das sociedades analisadas, no caso, as sociedades indígenas da América
Espanhola do século XVI, provêm da Península Ibérica e da Itália do Renascimento
e não do distante passado pré-hispânico. O fenômeno da mestiçagem
manobra com um número muito grande de variáveis que muitas vezes
fogem à percepção dos historiadores. Além da grande complexidade das mestiçagens,
o autor demonstra que havia e ainda há uma grande desconfiança
em relação ao tema. Gruzinski estende a sua crítica aos antropólogos amantes
de arcaísmos e de “sociedades frias” ou de tradições autênticas. Gruzinski
certamente, ao escolher o título de seu livro, quer marcar sua distância do au-
tor de “O pensamento selvagem”. Em seu primeiro capítulo, de fato, critica a
antropologia estruturalista por ter desprezado a importância dos processos
de recomposição permanente, privilegiando por sua vez as totalidades coerentes,
estáveis e com contornos tangíveis. A todos que ignoram os efeitos da
colonização ocidental e as reações que se desencadearam, o autor acusa de
ocultadores da história, sem a qual é impossível conhecer a profundidade essencial
desse processo.
Gruzinski tem a preocupação de tentar definir o que seria o conceito de
mestiçagem. Tarefa difícil na medida em que os termos “mistura”, “mestiçagem”
e “sincretismo” são carregados de diversas conotações e a priori (p. 42).
Gruzinski alerta que a compreensão do termo choca-se com os hábitos intelectuais
que preferem os conjuntos monolíticos e os clichês e estereótipos em
vez dos espaços intermediários (p. 48). Alerta também para as ciladas que se
impõem quando se utilizam os conceitos de cultura ou identidade. Neste sentido,
o autor critica aos que “evocam a existência de uma ‘América Barroca’
ou uma ‘economia do Antigo Regime’ como se pudesse se tratar de realidades
homogêneas e coerentes, das quais só restasse estabelecer os traços originais”
(p. 54). Ou seja, Gruzinski adverte que para analisarmos as mestiçagens, nós,
historiadores, precisamos “submeter nossas ferramentas de ofício a uma crítica
severa e reexaminar as categorias canônicas que organizam, condicionam
e, com freqüência, compartimentam as nossas pesquisas” (p. 55). Na análise
que Gruzinski se propõe, emprega o termo “mestiçagem” para designar as
misturas que ocorreram em solo americano no século XVI entre seres humanos
imaginários e formas de vida, vindos de quatro continentes, América, Europa,
África e Ásia. Já o termo “hibridação” é utilizado por Gruzinski na análise
das misturas que se desenvolvem dentro de uma mesma civilização ou de
um mesmo conjunto histórico (p. 62).
Ao analisar o momento da conquista, Gruzinski relembra que a chegada
dos europeus gerou altas turbulências e foi sinônimo de desordem e caos, e
que sem esta noção em mente não podemos compreender a evolução da colonização
e as misturas provocadas pela conquista (p. 73). Surgiram o que o autor
chama de “zonas estranhas” onde a improvisação venceu a norma e o costume,
ou seja, os vínculos que ligaram os espanhóis e as populações ameríndias
foram profundamente marcados por indeterminações, precariedades e improvisações.
Havia um déficit constante nas trocas que se estabeleciam, visto que
se relacionavam fragmentos e estilhaços da Europa, da América e da África.
Além do impacto da conquista, Gruzinski desenvolve em um de seus capítulos
outro processo que considera importante na formação das mestiçagens na
América Espanhola: a ocidentalização. Ela operou a transferência para o nosso
lado do Atlântico dos imaginários e das instituições do Velho Mundo (p.
94). Um dos elos essenciais dessa ocidentalização foi a cristianização.
Ao considerar o processo de ocidentalização, Gruzinski passa a abordar
a cópia indígena. Fruto da demanda de uma clientela espanhola ou indígena,
ávida por objetos de estilo europeu, a reprodução indígena, ou melhor, a noção
de cópia acabou por se revelar extremamente elástica. Gruzinski demonstra
que a concepção européia de reprodução deixava um campo considerável
à interpretação e à invenção. Neste ponto, o autor começa a analisar o que
consideramos o cerne deste seu novo livro: as mestiçagens da imagem.
De uma forma bastante criativa, Gruzinski, ao analisar os frisos do desfile
das Sibilas que se encontram na “Casa do Decano” em Puebla ou os afrescos
que enfeitam a igreja agostiniana de Ixmiquilpan, foge dos esquematismos
e clichês construídos em relação aos índios da América, que sempre se
referem aos esplendores das civilizações pré-colombianas ou à decadência
inapelável que teria se sucedido (p. 131). Gruzinski demonstra que os indígenas,
que pintaram as imagens analisadas, se inspiraram nas obras de Ovídio,
principalmente em “As metamorfoses”, e adaptaram motivos clássicos de modo
a dar às cenas indígenas um aspecto antigo. Gruzinski acredita que a razão
para tantos esforços em unir os motivos ovidianos e indígenas seria maquiar
as inúmeras reminiscências pagãs cujas conseqüências reflexivas
poderiam assim estar fora do alcance de um espírito europeu.
Gruzinski direciona o nosso olhar para um espaço ornamental — os frisos.
Seriam estes espaços um local dedicado às frivolidades da decoração, aos
efeitos superficiais e ao culto do pormenor? Gruzinski afirma que é preciso
reconsiderar o papel das margens e do ornamento na arte européia e a devolver
a esses espaços o papel e o significado que lhes cabem. Gruzinski também
põe em relevo a importância do maneirismo na proliferação do gosto pelo
bizarro, pelos fenômenos estranhos e monstruosos, que influenciou o uso dos
grotescos europeus pelos artistas mexicanos — os tlacuilos. Os grotescos revelam
o gosto da época pelos arabescos e bestiários fantásticos. Em sua análise,
Gruzinski demonstra que os grotescos permitiram a troca entre dois mundos
— o indígena e o europeu. Neste sentido, o autor se volta para este objeto
tão pouco estudado mas essencial para o processo de localização de engrenagens
e processos de mestiçagem. Os grotescos europeus, ainda que explorem
tendências decorativas, privilegiam metamorfoses e hibridações que estão
presentes no pensamento do Renascimento. A contribuição de Gruzinski se
dá pelo fato de constatar que a hibridação presente nas gravuras analisadas se
transforma, em solo mexicano, em mestiçagens, uma vez que houve naquele
momento um alargamento gigantesco de horizontes (p. 193). Cabe ressaltar
que Gruzinski, em relação ao seu conceito de mestiçagem, não trabalha com
a idéia de choque, justaposição, substituição ou mascaramento. O autor considera
que o processo resultante da mestiçagem não é um puro produto dos
meios que o engendraram.Neste sentido, o autor prefere trabalhar com a idéia
de “atraidor” que à maneira de um ímã permite ajustar entre si peças díspares,
reorganizando-as e dando-lhes um sentido (p. 197). Ou seja, ao unir concepções
diversas, o atraidor possibilita a expressão de um pensamento mestiço,
como podemos ver nos afrescos indígenas, no mapa-paisagem da cidade
de Cholula ou nos cantares indígenas mexicanos.
Gruzinski se apropria da expressão “culture of disappearance” utilizada
pelo sociólogo Ackbar Abbas, que analisa a situação de Hong Kong no último
decênio do século XX (p. 315). Gruzinski considera míopes os que reduziram
o passado do México a uma história de massacres e destruições, e que por
muito tempo ignoraram ou fizeram desaparecer as formas singulares do Renascimento
indígena (p. 316). Os nobres mexicanos, para evitar serem assimilados
ou reabsorvidos, tiveram que aprender a “sobreviver a uma cultura
de desaparecimento” adotando estratégias para tirar partido de mutações,
evitando a hispanização pura e simples (p. 316). Portanto, o autor de uma
maneira bastante feliz descarta as ciladas da marginalidade que apenas consolida
o centro, assim como escapa às ilusões do local, percebido de forma
ideal como um porto seguro que teria conservado a antiga pureza (p. 317).
Gruzinski, o tempo todo, nos alerta que o conjunto de componentes extremamente
diversos como os pictogramas, os grotescos, as fábulas antigas, os
cromatismos, os efeitos luminosos, frutos do encontro e do enfrentamento,
não de duas culturas, mas do que ele chama “dois modos de expressão e comunicação”
(p. 273), pertencem a um espaço novo, a uma “zona estranha” (p.
243), cuja compreensão depende da invenção de novos procedimentos de
análise.
Os artistas da cidade do México no século XVI, assim como os cineastas
de Hong Kong, segundo o autor, elaboraram novas práticas da imagem, ao
mesmo tempo que desestabilizaram e distorceram os gêneros, sejam eles os
grotescos do Renascimento, os velhos cantares ameríndios ou os filmes de
kung-fu (p. 319).
Este livro de Gruzinski, além de ser uma obra de grande erudição, também
é uma lição de método. A nós, historiadores, propõe que estejamos atentos
à interdisciplinaridade e a todas as formas de expressão que permitam um
enriquecimento das formas de análise de nosso objeto de estudo. Como disse
anteriormente, Gruzinski faz diversas pontes com o presente. O seu estudo
do México espanhol após a conquista não impede que analise certas questões
contemporâneas como a mundialização, a “World Culture” e a influência cada
vez mais predominante dos Estados Unidos. Gruzinski, por exemplo, analisa
em seu livro os filmes de Peter Greenaway “Prospero´s Books” e “The Pillow
Book”, e o cinema do diretor Wong Kar-wai procedente de Hong Kong.
Um dos filmes de Wong Kar-wai, “Happy Together”, que narra as peripécias
de dois chineses em Buenos Aires, dá título a sua conclusão. Ao analisar este
filme, Gruzinski, através do olhar do diretor, expõe a força das mestiçagens
num mundo onde imperam os fluxos de informação e poder do capitalismo
em nível mundial.
Gruzinski está atento à complexidade do tema na medida em que realça
os limites que uma mistura pode alcançar, uma vez que pode se transformar
em uma nova realidade ou adquirir uma autonomia imprevista. Portanto, o
autor sugere que o estudo destes limites com suas conseqüências para o fenômeno
da mestiçagem está sendo reservado para um livro futuro. Nele, talvez
o autor possa nos mostrar algo que ainda não foi abordado neste livro. Qual
será o lugar da cultura mestiça neste processo de mundialização engendrado
em escala planetária pelo capitalismo? Gruzinski já demonstrou a impossibilidade
do retorno ao passado, do despertar das culturas submetidas. Restanos
indagar se a cultura mestiça se manterá refém dentro dos limites da tradição
ocidental ou se permitirá o surgimento de algo novo que romperá com
a lógica do sistema de dominação atualmente vigente.
Certamente o leitor que se dispuser a ler “O Pensamento Mestiço” de Serge
Gruzinski, não se decepcionará e poderá se deixar levar pelo prazer de descobrir
uma outra América.
Resenha do livro de Gruzinski: O pensamento mestiço
O Pensamento Mestiço
Serge Gruzinski, São Paulo: Companhia das Letras, 2001
Resenha por Isabela Frade
Publicado no fim de 2001, o trabalho de Gruzinski trouxe novos
ares aos estudos culturais. O Pensamento Mestiço é cativante. Texto
denso, porém fluido, escrito com estilo. O objeto de investigação é,
à primeira vista, matéria irrelevante para os temas da história da
arte: obras de qualidade estética duvidosa, produtos de encomenda
católica aos índios nahua no México colonial; Gruzinski debruça-se
sobre pinturas murais num maneirismo reciclado com imagéticas
autóctones. No entanto, o autor vai, pouco a pouco, desvelando o
processo de criação das obras, esmiuçando cada um dos elementos
da composição na reconstrução de seus conteúdos manifestos ou
subliminares. Cada obra adquire, a partir de sua leitura, riqueza e
complexidade antes opacas ao olhar leigo. O que aguça o interesse
do leitor, agora desperto, é a revelação dos aspectos híbridos de
uma imagética ameríndia que se insinua em representações religiosas
ou seculares dos meios europeus transposta pelos colonizadores
espanhóis.
O trabalho restaura as estratégias comunicacionais e expressivas
de uma cultura em dissolução. Aprofundando suas pesquisas sobre
“O macaco e a centaura”, detalhe do
painel “As Sibilas” na Casa del Deán,
séc XVI, Puebla, México.
Resenha por Isabela Frade
a formação das sociedades coloniais do Novo Mundo, o historiador
lança mão de análises sobre realidades espaço-temporais recentes,
como a Hong Kong ou a Berlim dos anos 90, na construção de uma
rede conceitual que objetiva apreender o fenômeno da mestiçagem
em seu sentido mais amplo. Esse aspecto torna a história, na perspectiva
apontada aqui, uma disciplina que pensa o tempo e a cultura
de modo não linear.
O hibridismo é tema corriqueiro nas análises sobre as culturas
pós-modernas. A globalização, no entanto, não é fenômeno recente,
lembra Gruzinski. O processo já ocorrera no Renascimento, com a
unificação do comércio mundial pelas linhas marítimas transcontinentais
capitaneadas por Portugal e Espanha, seguidos pela Holanda,
Inglaterra, França. Esse foi o princípio da ocidentalização do mundo.
O trabalho apresenta, a todo momento, vínculos entre passado e
presente, relativizando ambos: “A complexidade é ao mesmo tempo
uma questão de espaços e de temporalidades”.
Uma história, híbrida ela também, interface de inúmeras disciplinas,
e que se volta sobre si mesma, resgatando espaços vazios, vácuos
deixados para trás pelo etnocentrismo marcante dessa disciplina.
Gruzinski vai buscar pesquisa realizada por um historiador alemão
em 1889, trazendo-a à contemporaneidade. Seguindo os rastros da
viagem de Aby Warburg ao Novo México, retoma suas anotações
sobre a então percebida confluência das culturas renascentistas e
indígenas. Warburg, precocemente superando barreiras disciplinares e
realizando o que se poderia denominar uma etno-história, mergulhara
no universo mítico hopi, aproximando-se da antropologia de Franz
Boas. Seu interesse maior era fazer uma leitura do Renascimento, área
de estudos na qual era reconhecida autoridade, a partir da cultura
americana nativa. “Sem o estudo de sua cultura primitiva, eu nunca
teria tido condições de dar uma base mais ampla à psicologia do
Renascimento”, afirmou.
Acompanhando Warburg, mas buscando responder à questão maior
da hibridização das culturas, é no exame de obras do renascimento
indígena mexicano, cujo momento é aquele logo após a Conquista,
que Gruzinski detecta o fio que atravessa o fenômeno desde dentro. É
a partir do conceito de “atraidores” que se dá a intelecção do nódulo
central desse processo. O atraidor é definido como um tipo de forma
O Pensamento Mestiço
que permite o ajuste entre si de peças díspares, reorganizando-as
e dando-lhes sentido, funcionando como uma espécie de ímã. “É
o atraidor que seleciona esta ou aquela conexão, orienta esta ou
aquela ligação, sugere esta ou aquela associação entre as criaturas
e as coisas. Ele intervém como se fosse dotado de energia própria
e de capacidades organizadoras.” O atraidor opera como ponte,
paralelo entre universos culturais distintos que, ao serem postos
em contato, tendem a se unir e mesclar.
Mostrando as capacidades mimética e adaptadora excepcionais
dos artesãos indígenas no México recém-conquistado, o estudo
sobre o “pensamento mestiço” destaca as qualidades metamórficas
das formas híbridas. Essa qualidade potencial para a mestiçagem
– presente em alguns estilos visuais – é instável e mutante. Sua
instabilidade é a qualidade ou o modo de ser que permite a fusão com
outra classe de formas. A harmonização resulta de uma comunicação
entre os estilos, o que acaba resultando em um novo arranjo de
formas. Os estilos híbridos são férteis e fulgurantes. São dinâmicos,
e sua energia, vibrante e contagiante, busca sempre a adesão.
O “atraidor” não serve apenas como elo entre dois contextos, mas
segue amalgamando espaços e tempos, arrastando as formas para
movimentos de disjunção e conjunção perenes. Propulsor da composição
de formas híbridas, persiste como catalisador da mudança
e da alternância das formas. “O híbrido não é a marca deixada pela
continuidade da criação. É o produto de um movimento, de uma
instabilidade estrutural das coisas (...) O híbrido é também o resultado
espetacular de uma ‘simpatia’ dentro de um universo repleto
de uniões e enfrentamentos.” As formas híbridas, porque prenhes de
elementos atraidores, encontram-se em perene transformação. Suas
mais fortes características são a complexidade, a fragmentação, a
instabilidade, a imprevisibilidade, a diversidade, a opulência ou o
excesso, o mimetismo, a ambigüidade e a fecundidade.
O estilo grotesco-mexicano, resultado do amálgama da representação
de conquistadores e conquistados, é um veículo de criação
estética de um povo fragmentado, exposto ao máximo ao risco do
extermínio. É conhecida a crueldade dos suplícios impostos pelos
conquistadores. O domínio das culturas autóctones da América
espanhola, rápido e violento, perpassou pela destruição dos ícones
Resenha por Isabela Frade
e imagens das culturas locais. Porém, quando se tratou de fazer a
colonização, a estratégia mudou. Era preciso estabelecer modos de
influenciar a população autóctone. As elites indígenas foram cooptadas
com distinções, estratégia para um domínio continuado e a
arregimentação da força de trabalho para os projetos de implementação
da colônia. Assim, os tlacuilos, artistas nativos, são recrutados
para a confecção de pinturas murais nas igrejas e residências das
autoridades eclesiásticas instaladas no México a fim de dar início ao
processo de evangelização.
O aprendizado da técnica européia pelos tlacuilos exigiu uma
ruptura com os padrões epistemológicos nativos. A representação
européia, mesmo que de cunho religioso, era de natureza secular, a
arte indígena, por sua vez, recriação e atualização de seu universo
mítico. Essa seria a causa da adesão autóctone à imagética dos
grotescos, recriações renascentistas do paganismo romano. A ausência
de perspectiva, gravidade, lógica e linearidade narrativa, e
a presença de figuras metamorfoseadas, a disposição simétrica dos
motivos e o forte caráter ornamental são os elementos que apontam
para uma visualidade afim. “Apossando-se dos grotescos, os tlacuilos
desvirtuavam o prestígio e talvez a arte dos vencedores em benefício
do próprio mundo.” A partir dos grotescos, em que as formas se
encadeiam numa espécie de automatismo associativo e fantástico,
os amálgamas tornaram-se possíveis, as conjunções entre cultura
exógena e endógena fizeram-se visíveis.
Enquanto os espanhóis buscavam replicar o mundo europeu,
fazendo a transferência de seus imaginários e instituições, os indígenas
procuravam brechas, vieses que permitissem a expressão de sua
própria cosmogonia. Por meio do mimetismo, recurso desenvolvido
para a aceitação de um novo mercado, em que a réplica era privilegiada,
os tlacuilos paulatinamente penetravam outro universo de
signos. Pelo domínio relativo da nova semântica, foram introduzindo
elementos de sua própria cultura.
Gruzinski aponta o termo nahua ixptla como noção básica para o
entendimento da polissemia dos textos indígenas. Inerente às representações
estéticas nativas (plásticas ou literárias), ixptla significa a
natureza conjugada de todos os seres, concebida como contigüidade.
Reificações de uma essência sob formas mutáveis, seres e coisas parO
Pensamento Mestiço
ticipam de uma mesma emanação ou manifestação, ixplta. Mediante
a conjugação natural dos entes, a associação das formas, mesmo
que heteróclitas, é recurso utilizado como veículo de mensagens e
idéias próprias aos indígenas. Assim como o sincretismo afro-brasileiro,
muitas imagens católicas foram apropriadas pelos tlacuilos
para veicular sentidos próprios a sua cosmogonia.
Em Puebla, Gruzinski analisa as pinturas murais na Casa del Deán,
“Casa do Decano”, o edifício mais antigo da cidade, residência de
Tomás de la Plaza, terceiro decano da Igreja de Puebla em 1564 e
1589. Em um dos luxuosos salões, o autor se detém diante de uma
paisagem hispano-flamenga, lugar atravessado por uma procissão de
belas amazonas. Identifica a representação das Sibilas, as profetisas
da Antigüidade que teriam anunciado a chegada do Messias. Com
tema usual na arte cristã desde a Idade Média, a pintura surpreende
pela presença dos frisos que a emolduram. Casais insólitos:
centauras e macacos brincam num cenário vegetal exuberante.
Centauras de peito generoso oferecem flores a macacos de brincos
e cabelos escovinha. Na cena, divertida, Gruzinski percebe um
sentido enigmático.
Os macacos faziam parte do repertório das iluminuras e tapeçarias
medievais, mas os brincos dos macacos de Puebla implicam
referência local. O macaco, animal exótico para os europeus, ocupava
lugar importante na cosmogonia ameríndia. Estava presente nos
mitos e rituais, sendo uma das 20 figuras de seu calendário divinatório.
“As representações clássicas são enfeitadas com brincos e um
corte de cabelo escovinha, tal como seus congêneres em Puebla.
Os Nahuas associavam o macaco ozomatli à boa fortuna, à alegria,
e na sua acepção negativa à vida libertina.” A centaura, por sua
vez, imagem conhecida da Antigüidade clássica, oferece uma flor
a esse macaco nativo. O macaco está com a língua para fora, lambe
a flor, uma ololiuhqui, flor alucinógena, largamente utilizada pela
população autóctone em rituais divinatórios. Certamente entendida
pelos religiosos como divertimento, a cena apresenta a encenação
de um cerimonial conhecido pelos índios. O bizarro torna-se
disfarce na divulgação de uma mensagem facilmente decodificada
pela população nativa, encontrando seu lugar na residência de uma
autoridade eclesiástica.
Resenha por Isabela Frade
A mitologia antiga servia para a divulgação e perpetuação da
mitologia ameríndia. Estratégia dos vencidos, a perda de legitimidade
trouxe o disfarce das próprias representações como tática de
autopreservação. Por outro lado, os clérigos costumavam considerar
influência positiva a mescla de elementos das duas culturas, significando
a abertura necessária ao trabalho de evangelização em que
se empenhavam. A Igreja foi protagonista nesse processo de mestiçagem,
especialmente pela educação da elite indígena. Permitindo a
veiculação das imagens híbridas, o catolicismo foi adquirindo feição
própria, um colorido tropical que, por sua vez, afirmava a confluência
das culturas espanhola e ameríndia num complexo único, conformador
da sociedade mexicana nascente.
Gruzinski também explorou a Europa em busca das influências
mútuas entre Europa e América: na descrição dos afrescos na Galeria
dos Ofícios em Florença, destaca a presença de guerreiros astecas.
Essa presença reflete o apreço renascentista às novas descobertas. A
abertura à forma exótica atesta a abertura inerente à própria cultura
ocidental em relação à diferença. O espaço livre para a alteridade,
ainda que em forma decorativa – superficial, secundária –, possibilitou
a criação de novos cenários, impregnando o imaginário europeu
de novas configurações, enriquecendo-o. À adesão de elementos
da Antigüidade, causa/efeito da revolução cultural renascentista,
somaram-se as novas figuras descobertas nas Américas.
Gruzinski faz e refaz os percursos entre colônia e metrópole
inúmeras vezes. Perpassa também pelo vértice temporal, apontando
similitudes entre a protoglobalização renascentista e os avançados
processos de interconexão da globalização hodierna. Os olhares sobre
o passado buscam iluminar o presente, refazendo uma história
parcial e redutora. “Se o pensamento letrado ocidental, na sua forma
dogmática, impõe recortes nítidos e relega ao irracional, ao absurdo
ou ao demoníaco o que não se dobra às regras de sua retórica e ao
seu dualismo, o pensamento nahua – ou o que dele percebemos por
meio das constantes mediações européias – parece mais flexível.” A
história, ao pensar a realidade por meio de suas dobras e refluxos,
torna-se mais capaz de entender a complexidade dos fenômenos
sociais.
A sociabilidade contemporânea requalifica distâncias geográficas
O Pensamento Mestiço
e históricas, compondo um melting pot de sabores locais, mas com
ingredientes globais. O processo de mundialização instaura uma
“experiência fractal” que significa a vivência individual em escala
planetária, cada pessoa como parte de um universo interconectado,
servindo como referência a esse todo. Um processo feito de bricolagens,
desvios, misturas insólitas, reutilizações emerge em um
contexto fluido, em que a circulação é permanente. Os elementos do
passado servem como matéria-prima a novas reelaborações, ressurgem
em novos contextos, descolados de suas condições de origem.
Estamos imersos num processo de hibridização em grande escala.
Essa é uma história que só poderia acontecer agora. Uma história
híbrida, fruto de um pensamento atento à identidade e à alteridade
entre as culturas, mergulhando em seus hiatos e confluências,
debruçando-se exatamente sobre as nebulosas conformações de
seus encontros e desencontros. Uma história cultural das zonas de
indefinição e das misturas. Uma disciplina que emerge como fruto
de nosso próprio tempo, uma história mundializada.
Isabela Nascimento Frade, arte-educadora, Doutora em Comunicação, professora adjunta
do Depto de Educação Artística e Cultura Popular/ Instituto de Artes-UERJ
Serge Gruzinski, São Paulo: Companhia das Letras, 2001
Resenha por Isabela Frade
Publicado no fim de 2001, o trabalho de Gruzinski trouxe novos
ares aos estudos culturais. O Pensamento Mestiço é cativante. Texto
denso, porém fluido, escrito com estilo. O objeto de investigação é,
à primeira vista, matéria irrelevante para os temas da história da
arte: obras de qualidade estética duvidosa, produtos de encomenda
católica aos índios nahua no México colonial; Gruzinski debruça-se
sobre pinturas murais num maneirismo reciclado com imagéticas
autóctones. No entanto, o autor vai, pouco a pouco, desvelando o
processo de criação das obras, esmiuçando cada um dos elementos
da composição na reconstrução de seus conteúdos manifestos ou
subliminares. Cada obra adquire, a partir de sua leitura, riqueza e
complexidade antes opacas ao olhar leigo. O que aguça o interesse
do leitor, agora desperto, é a revelação dos aspectos híbridos de
uma imagética ameríndia que se insinua em representações religiosas
ou seculares dos meios europeus transposta pelos colonizadores
espanhóis.
O trabalho restaura as estratégias comunicacionais e expressivas
de uma cultura em dissolução. Aprofundando suas pesquisas sobre
“O macaco e a centaura”, detalhe do
painel “As Sibilas” na Casa del Deán,
séc XVI, Puebla, México.
Resenha por Isabela Frade
a formação das sociedades coloniais do Novo Mundo, o historiador
lança mão de análises sobre realidades espaço-temporais recentes,
como a Hong Kong ou a Berlim dos anos 90, na construção de uma
rede conceitual que objetiva apreender o fenômeno da mestiçagem
em seu sentido mais amplo. Esse aspecto torna a história, na perspectiva
apontada aqui, uma disciplina que pensa o tempo e a cultura
de modo não linear.
O hibridismo é tema corriqueiro nas análises sobre as culturas
pós-modernas. A globalização, no entanto, não é fenômeno recente,
lembra Gruzinski. O processo já ocorrera no Renascimento, com a
unificação do comércio mundial pelas linhas marítimas transcontinentais
capitaneadas por Portugal e Espanha, seguidos pela Holanda,
Inglaterra, França. Esse foi o princípio da ocidentalização do mundo.
O trabalho apresenta, a todo momento, vínculos entre passado e
presente, relativizando ambos: “A complexidade é ao mesmo tempo
uma questão de espaços e de temporalidades”.
Uma história, híbrida ela também, interface de inúmeras disciplinas,
e que se volta sobre si mesma, resgatando espaços vazios, vácuos
deixados para trás pelo etnocentrismo marcante dessa disciplina.
Gruzinski vai buscar pesquisa realizada por um historiador alemão
em 1889, trazendo-a à contemporaneidade. Seguindo os rastros da
viagem de Aby Warburg ao Novo México, retoma suas anotações
sobre a então percebida confluência das culturas renascentistas e
indígenas. Warburg, precocemente superando barreiras disciplinares e
realizando o que se poderia denominar uma etno-história, mergulhara
no universo mítico hopi, aproximando-se da antropologia de Franz
Boas. Seu interesse maior era fazer uma leitura do Renascimento, área
de estudos na qual era reconhecida autoridade, a partir da cultura
americana nativa. “Sem o estudo de sua cultura primitiva, eu nunca
teria tido condições de dar uma base mais ampla à psicologia do
Renascimento”, afirmou.
Acompanhando Warburg, mas buscando responder à questão maior
da hibridização das culturas, é no exame de obras do renascimento
indígena mexicano, cujo momento é aquele logo após a Conquista,
que Gruzinski detecta o fio que atravessa o fenômeno desde dentro. É
a partir do conceito de “atraidores” que se dá a intelecção do nódulo
central desse processo. O atraidor é definido como um tipo de forma
O Pensamento Mestiço
que permite o ajuste entre si de peças díspares, reorganizando-as
e dando-lhes sentido, funcionando como uma espécie de ímã. “É
o atraidor que seleciona esta ou aquela conexão, orienta esta ou
aquela ligação, sugere esta ou aquela associação entre as criaturas
e as coisas. Ele intervém como se fosse dotado de energia própria
e de capacidades organizadoras.” O atraidor opera como ponte,
paralelo entre universos culturais distintos que, ao serem postos
em contato, tendem a se unir e mesclar.
Mostrando as capacidades mimética e adaptadora excepcionais
dos artesãos indígenas no México recém-conquistado, o estudo
sobre o “pensamento mestiço” destaca as qualidades metamórficas
das formas híbridas. Essa qualidade potencial para a mestiçagem
– presente em alguns estilos visuais – é instável e mutante. Sua
instabilidade é a qualidade ou o modo de ser que permite a fusão com
outra classe de formas. A harmonização resulta de uma comunicação
entre os estilos, o que acaba resultando em um novo arranjo de
formas. Os estilos híbridos são férteis e fulgurantes. São dinâmicos,
e sua energia, vibrante e contagiante, busca sempre a adesão.
O “atraidor” não serve apenas como elo entre dois contextos, mas
segue amalgamando espaços e tempos, arrastando as formas para
movimentos de disjunção e conjunção perenes. Propulsor da composição
de formas híbridas, persiste como catalisador da mudança
e da alternância das formas. “O híbrido não é a marca deixada pela
continuidade da criação. É o produto de um movimento, de uma
instabilidade estrutural das coisas (...) O híbrido é também o resultado
espetacular de uma ‘simpatia’ dentro de um universo repleto
de uniões e enfrentamentos.” As formas híbridas, porque prenhes de
elementos atraidores, encontram-se em perene transformação. Suas
mais fortes características são a complexidade, a fragmentação, a
instabilidade, a imprevisibilidade, a diversidade, a opulência ou o
excesso, o mimetismo, a ambigüidade e a fecundidade.
O estilo grotesco-mexicano, resultado do amálgama da representação
de conquistadores e conquistados, é um veículo de criação
estética de um povo fragmentado, exposto ao máximo ao risco do
extermínio. É conhecida a crueldade dos suplícios impostos pelos
conquistadores. O domínio das culturas autóctones da América
espanhola, rápido e violento, perpassou pela destruição dos ícones
Resenha por Isabela Frade
e imagens das culturas locais. Porém, quando se tratou de fazer a
colonização, a estratégia mudou. Era preciso estabelecer modos de
influenciar a população autóctone. As elites indígenas foram cooptadas
com distinções, estratégia para um domínio continuado e a
arregimentação da força de trabalho para os projetos de implementação
da colônia. Assim, os tlacuilos, artistas nativos, são recrutados
para a confecção de pinturas murais nas igrejas e residências das
autoridades eclesiásticas instaladas no México a fim de dar início ao
processo de evangelização.
O aprendizado da técnica européia pelos tlacuilos exigiu uma
ruptura com os padrões epistemológicos nativos. A representação
européia, mesmo que de cunho religioso, era de natureza secular, a
arte indígena, por sua vez, recriação e atualização de seu universo
mítico. Essa seria a causa da adesão autóctone à imagética dos
grotescos, recriações renascentistas do paganismo romano. A ausência
de perspectiva, gravidade, lógica e linearidade narrativa, e
a presença de figuras metamorfoseadas, a disposição simétrica dos
motivos e o forte caráter ornamental são os elementos que apontam
para uma visualidade afim. “Apossando-se dos grotescos, os tlacuilos
desvirtuavam o prestígio e talvez a arte dos vencedores em benefício
do próprio mundo.” A partir dos grotescos, em que as formas se
encadeiam numa espécie de automatismo associativo e fantástico,
os amálgamas tornaram-se possíveis, as conjunções entre cultura
exógena e endógena fizeram-se visíveis.
Enquanto os espanhóis buscavam replicar o mundo europeu,
fazendo a transferência de seus imaginários e instituições, os indígenas
procuravam brechas, vieses que permitissem a expressão de sua
própria cosmogonia. Por meio do mimetismo, recurso desenvolvido
para a aceitação de um novo mercado, em que a réplica era privilegiada,
os tlacuilos paulatinamente penetravam outro universo de
signos. Pelo domínio relativo da nova semântica, foram introduzindo
elementos de sua própria cultura.
Gruzinski aponta o termo nahua ixptla como noção básica para o
entendimento da polissemia dos textos indígenas. Inerente às representações
estéticas nativas (plásticas ou literárias), ixptla significa a
natureza conjugada de todos os seres, concebida como contigüidade.
Reificações de uma essência sob formas mutáveis, seres e coisas parO
Pensamento Mestiço
ticipam de uma mesma emanação ou manifestação, ixplta. Mediante
a conjugação natural dos entes, a associação das formas, mesmo
que heteróclitas, é recurso utilizado como veículo de mensagens e
idéias próprias aos indígenas. Assim como o sincretismo afro-brasileiro,
muitas imagens católicas foram apropriadas pelos tlacuilos
para veicular sentidos próprios a sua cosmogonia.
Em Puebla, Gruzinski analisa as pinturas murais na Casa del Deán,
“Casa do Decano”, o edifício mais antigo da cidade, residência de
Tomás de la Plaza, terceiro decano da Igreja de Puebla em 1564 e
1589. Em um dos luxuosos salões, o autor se detém diante de uma
paisagem hispano-flamenga, lugar atravessado por uma procissão de
belas amazonas. Identifica a representação das Sibilas, as profetisas
da Antigüidade que teriam anunciado a chegada do Messias. Com
tema usual na arte cristã desde a Idade Média, a pintura surpreende
pela presença dos frisos que a emolduram. Casais insólitos:
centauras e macacos brincam num cenário vegetal exuberante.
Centauras de peito generoso oferecem flores a macacos de brincos
e cabelos escovinha. Na cena, divertida, Gruzinski percebe um
sentido enigmático.
Os macacos faziam parte do repertório das iluminuras e tapeçarias
medievais, mas os brincos dos macacos de Puebla implicam
referência local. O macaco, animal exótico para os europeus, ocupava
lugar importante na cosmogonia ameríndia. Estava presente nos
mitos e rituais, sendo uma das 20 figuras de seu calendário divinatório.
“As representações clássicas são enfeitadas com brincos e um
corte de cabelo escovinha, tal como seus congêneres em Puebla.
Os Nahuas associavam o macaco ozomatli à boa fortuna, à alegria,
e na sua acepção negativa à vida libertina.” A centaura, por sua
vez, imagem conhecida da Antigüidade clássica, oferece uma flor
a esse macaco nativo. O macaco está com a língua para fora, lambe
a flor, uma ololiuhqui, flor alucinógena, largamente utilizada pela
população autóctone em rituais divinatórios. Certamente entendida
pelos religiosos como divertimento, a cena apresenta a encenação
de um cerimonial conhecido pelos índios. O bizarro torna-se
disfarce na divulgação de uma mensagem facilmente decodificada
pela população nativa, encontrando seu lugar na residência de uma
autoridade eclesiástica.
Resenha por Isabela Frade
A mitologia antiga servia para a divulgação e perpetuação da
mitologia ameríndia. Estratégia dos vencidos, a perda de legitimidade
trouxe o disfarce das próprias representações como tática de
autopreservação. Por outro lado, os clérigos costumavam considerar
influência positiva a mescla de elementos das duas culturas, significando
a abertura necessária ao trabalho de evangelização em que
se empenhavam. A Igreja foi protagonista nesse processo de mestiçagem,
especialmente pela educação da elite indígena. Permitindo a
veiculação das imagens híbridas, o catolicismo foi adquirindo feição
própria, um colorido tropical que, por sua vez, afirmava a confluência
das culturas espanhola e ameríndia num complexo único, conformador
da sociedade mexicana nascente.
Gruzinski também explorou a Europa em busca das influências
mútuas entre Europa e América: na descrição dos afrescos na Galeria
dos Ofícios em Florença, destaca a presença de guerreiros astecas.
Essa presença reflete o apreço renascentista às novas descobertas. A
abertura à forma exótica atesta a abertura inerente à própria cultura
ocidental em relação à diferença. O espaço livre para a alteridade,
ainda que em forma decorativa – superficial, secundária –, possibilitou
a criação de novos cenários, impregnando o imaginário europeu
de novas configurações, enriquecendo-o. À adesão de elementos
da Antigüidade, causa/efeito da revolução cultural renascentista,
somaram-se as novas figuras descobertas nas Américas.
Gruzinski faz e refaz os percursos entre colônia e metrópole
inúmeras vezes. Perpassa também pelo vértice temporal, apontando
similitudes entre a protoglobalização renascentista e os avançados
processos de interconexão da globalização hodierna. Os olhares sobre
o passado buscam iluminar o presente, refazendo uma história
parcial e redutora. “Se o pensamento letrado ocidental, na sua forma
dogmática, impõe recortes nítidos e relega ao irracional, ao absurdo
ou ao demoníaco o que não se dobra às regras de sua retórica e ao
seu dualismo, o pensamento nahua – ou o que dele percebemos por
meio das constantes mediações européias – parece mais flexível.” A
história, ao pensar a realidade por meio de suas dobras e refluxos,
torna-se mais capaz de entender a complexidade dos fenômenos
sociais.
A sociabilidade contemporânea requalifica distâncias geográficas
O Pensamento Mestiço
e históricas, compondo um melting pot de sabores locais, mas com
ingredientes globais. O processo de mundialização instaura uma
“experiência fractal” que significa a vivência individual em escala
planetária, cada pessoa como parte de um universo interconectado,
servindo como referência a esse todo. Um processo feito de bricolagens,
desvios, misturas insólitas, reutilizações emerge em um
contexto fluido, em que a circulação é permanente. Os elementos do
passado servem como matéria-prima a novas reelaborações, ressurgem
em novos contextos, descolados de suas condições de origem.
Estamos imersos num processo de hibridização em grande escala.
Essa é uma história que só poderia acontecer agora. Uma história
híbrida, fruto de um pensamento atento à identidade e à alteridade
entre as culturas, mergulhando em seus hiatos e confluências,
debruçando-se exatamente sobre as nebulosas conformações de
seus encontros e desencontros. Uma história cultural das zonas de
indefinição e das misturas. Uma disciplina que emerge como fruto
de nosso próprio tempo, uma história mundializada.
Isabela Nascimento Frade, arte-educadora, Doutora em Comunicação, professora adjunta
do Depto de Educação Artística e Cultura Popular/ Instituto de Artes-UERJ
Entrevista com Serge Gruzinski
Para o historiador Serge Gruzinski, a França de Edith Piaf desapareceu, e os franceses não sabem como lidar com a sua nova cultura miscigenada
Para o historiador francês Serge Gruzinski, o discurso e as medidas antiimigratórias na Europa, promovidos por políticos populistas, ocultam as necessidades reais do capitalismo europeu de uma mão-de-obra barata, o que é propiciado pelos imigrantes de vários países que aportam ao continente.
Gruzinski é curador da exposição “Planète Métisse – To Mix or Not to Mix” (Planeta Mestiço - Misturar ou Não Misturar), em exibição no Museu do Quai Branly, em Paris. Na sua opinião, a cultura popular européia é hoje mais "mestiça" do que a brasileira ou americana.
"Os estrangeiros sempre chegaram à Europa, mas o problema agora é que esses novos mestiços não são estrangeiros. Eles são franceses como o francês branco e de olhos azuis. A tradição intelectual, política e educativa francesa, não tem nenhuma resposta para essa nova situação", diz o historiador. "A cultura francesa clássica já não existe. A cultura de Edith Piaf já desapareceu. Hoje, a cultura popular na França já é uma cultura mestiça."
Na exposição, os objetos contam a história de encontros de culturas que produzem uma nova cultura: mestiça. Entre os produtos culturais mestiços, o historiador escolheu a música brasileira, representada por doze diferentes manifestações musicais.
Especialista na história das Américas, autor de “História do Novo Mundo" (Edusp) e de "O Pensamento Mestiço" (Companhia das Letras), entre outros livros, Gruzinski conhece muito bem o Brasil, para onde viaja freqüentemente para participar de seminários, e fala perfeitamente o português.
Ele é também diretor de pesquisa no Centre Nacional de Recherches Scientifiques (CNRS) e diretor de estudos na Ecole des Hautes Etudes en Sciences Sociales (EHESS).
Na entrevista a seguir, dada em sua sala de trabalho na EHESS, Gruzinski fala da exposição, do "pensamento mestiço" e de novas formas de mestiçagens que se dão no solo europeu e no mundo.
Para ele, a Ásia é o novo celeiro das mestiçagens. "Os antropófagos, dos quais falaram muito bem os modernistas do Brasil, nos anos 20, se deslocaram. É a Ásia que faz a antropofagia agora", afirma.
*
O sr. é o autor de um livro intitulado "O Pensamento Mestiço". Como se forma esse pensamento? Ele é o resultado do encontro de duas ou mais culturas, quaisquer que elas sejam elas?
Serge Gruzinski: De uma maneira um pouco paradoxal, eu diria que as culturas nunca se encontram. As culturas não existem. Só existem seres, homens e mulheres que se encontram. E as coisas que se encontram são sempre fragmentos de culturas.
A idéia de que existem a cultura francesa e a cultura brasileira e que essas culturas se encontram é uma coisa completamente alegórica, é uma fantasia, uma imaginação.
São indivíduos ou grupos que se encontram e que misturam, não o conjunto da cultura, mas elementos escolhidos ou não de ambas as culturas. Essas se encontram através de indivíduos e sempre em contextos históricos que, muitas vezes, são assimétricos, de desigualdade, de relação de colonização.
Por exemplo, a cultura francesa quando considera as culturas latino-americanas “exóticas” não impede que haja comunicação entre o mundo latino-americano e a França, mas tem uma posição hierárquica que pensa a cultura francesa como cultura universal e a outra cultura, seja mexicana seja brasileira, como uma cultura “exótica”.
Existem dois níveis bem distintos. De um lado, as práticas culturais, ou seja misturar a gastronomia, a alimentação ou até mesmo as músicas. Já o pensamento mestiço é uma coisa mais complexa, porque supõe a mistura de mecanismos intelectuais diversos.
Por exemplo?
Gruzinski: Ele é o produto de pelo menos duas maneiras de pensar o mundo com instrumentos intelectuais distintos. Ou seja, o pensamento mestiço supõe um certo grau de consciência, não só o fenômeno de misturar, mas supõe uma capacidade de eleger nas duas culturas certos elementos e combiná-los.
Isso supõe toda uma estratégia. E razões bem precisas para fazê-lo. No caso dos índios do México, que estudei, era uma maneira de resistência, de conservar elementos das culturas pré-hispânicas, integrando-as aos elementos europeus, para encontrar uma forma de integração na nova sociedade colonial sem perder e esquecer todo o patrimônio pré-hispânico.
Então, temos esse pensamento mestiço que corresponde a um tipo de estratégia voluntária, deliberada, calculada. Também a estratégia da Igreja Católica de misturar elementos católicos com elementos locais em toda a América Latina para enraizar o seu culto é uma forma de pensamento mestiço. Escolher, misturar para conseguir os sincretismos. Em certo momento, esse movimento de manipulação escapa à Igreja Católica, e os sincretismo têm vida própria.
O que é um "objeto mestiço"?
Gruzinski: A exposição é num lugar que conserva objetos, o Museu do Quai Branly. A idéia era utilizar objetos para contar, explicar e interpretar o processo da mestiçagem. Um objeto mestiço é aquele que pertence a várias civilizações ao mesmo tempo.
Por exemplo, ele é africano e europeu, americano e europeu, asiático e americano. Temos na exposição dois objetos que são turcos e da China ao mesmo tempo.
O tema da exposição são as mestiçagens planetárias, ou seja, aquelas surgidas entre América, África, Ásia e Europa. São formas de mestiçagens que correspondem atualmente à situação européia com grupos africanos ou asiáticos formando a nova civilização européia.
Por exemplo, a ópera-balé "Padmavâti", de Albert Roussel, um autor francês do início do século XX. Essa ópera-balé estreou na Ópera de Paris em 1923. Neste ano (2008), ela foi remontada em Paris, e o diretor foi um cineasta famoso de Bollywood, da Índia. Ou seja, música francesa e direção de um cineasta indiano.
Essa é a nova cultura parisiense, mistura entre as coisas francesas e as outras culturas. "Padmavâti" é um objeto mestiço, uma obra mestiça.
O catálogo da exposição explica que a música é, por excelência, o recipiente da mestiçagem. Na exposição, o Brasil é apresentado como uma síntese da música mestiça, com todos os seus ritmos e gêneros. Por que a exposição só mostra a música brasileira, entre tantas outras músicas mestiças que o catálogo cita?
Gruzinski: Por várias razões. Primeiramente, pela enorme contribuição da música brasileira à música do século 20. E no caso do Brasil temos rapidamente a passagem da música popular à música nacional, com o samba e a "world music", ou seja, a recuperação da música do Brasil nesse "melting pot" das mestiçagens internacionais das músicas.
Há toda essa dimensão do passado histórico africano da escravidão e da criação de uma cultura nacional e popular a partir da música brasileira, que, com Carmen Miranda e o que se seguiu a ela, acaba tornando-se um produto industrial, uma música internacional e parte da "world music".
É óbvio que o jazz, o gospel, as músicas da Argentina e do México são também material interessante. O caso do Brasil nos interessou para podermos dar uma idéia, ainda que superficial, de uma genealogia, de um processo que começa na época colonial e de uma mestiçagem que se enriquece e muda continuamente.
No caso do Brasil, o que é extraordinário é que vemos que ele tem essa capacidade de reconstituir formas mestiças, recriar formas mestiças. Há uma recriação constante. As doze músicas mostradas no museu dão uma idéia de um processo que começou e continua, é permanente.
Também é importante recordar que, por trás dessas músicas, e também de todo o continente americano, temos o fenômeno da escravidão. A exposição pretende contribuir para desenvolver um olhar mais crítico sobre o passado, sobre a realidade cultural.
A gente deve saber que as mestiçagens do Brasil e da América espanhola tiveram um preço altíssimo, que foi a deportação sistemática dos povos africanos para o continente americano.
A idéia é levar o público a pensar os dois elementos, a riqueza das mestiçagens, mas também o contexto histórico, para evitar as ilusões que levam a pensar que a mistura das culturas significa igualdade.
Sabemos que, no caso do Brasil, a circulação entre as culturas e as misturas podem corresponder a uma situação de injustiça social total. Existe esse perigo de pensar que podemos resolver as fraturas sociais com as mestiçagens.
O governo da França gosta de utilizar esse tipo de ilusão, falando da liberdade de culturas e da mistura das culturas, para não resolver os problemas reais, que são sociais e econômicos.
As políticas antiimigração na Europa significam que os países temem a mestiçagem cultural e étnica ou são simplesmente um problema econômico e demográfico?
Gruzinski: Diria que é um tema extremamente confuso, atualmente. Existe um discurso antiimigração, mas por outro lado o capitalismo europeu, o desenvolvimento da União Européia precisa de mão-de-obra, e barata.
No discurso populista -dos políticos, da imprensa- aparece o medo. Num nível real, o capitalismo europeu tem necessidades econômicas que o levam a introduzir cada vez mais africanos, asiáticos e até ameríndios, que vêm da América Latina para a Espanha.
Há esse duplo aspecto do fenômeno. Nesse populismo não há somente um discurso político superficial. É verdade que os europeus estão entrando numa sociedade completamente distinta.
Nela, existem turcos, magrebinos (árabes do norte da África) e negros africanos que nasceram no continente europeu, o que significa que hoje a Europa é um continente muito mais mestiço do que o Brasil. O Brasil tem as mestiçagens do passado. A Europa está entrando numa fase em que grande parte da população é mestiça.
Basta ver a televisão, quem são os jovens da periferia de Paris e das grandes cidades? São magrebinos e negros. Moro no XV arrondissement (bairro parisiense) e vejo que os jovens são negros.
Parte da população européia já é africana ou asiática, e muitos têm a religião muçulmana. E isso suscita medo em muitas pessoas. A Europa não estava acostumada a conviver com a mestiçagem nascida na Europa.
Os estrangeiros sempre chegaram à Europa, mas o problema agora é que esses novos mestiços não são estrangeiros. Eles são franceses como o francês branco e de olhos azuis. Eles nasceram na República, são africanos ou asiáticos completamente mestiços, ocidentalizados, afrancesados. A tradição intelectual, política e educativa francesa, não tem nenhuma resposta para essa nova situação.
As respostas estão sendo construídas?
Gruzinski: É preciso construir, mas o problema é que muitas vezes a construção se faz através do populismo, manipulando os medos, não para encontrar novas formas de convivência, mas para captar eleitores, votos. Não para desenvolver políticas novas, mas para tentar provocar reações passageiras, para assegurar o poder de um grupo ou de outro.
O francês médio, branco tem medo da miscigenação étnica ou quer preservar a cultura francesa? Qual é o fantasma deste francês médio?
Gruzinski: A cultura francesa clássica já não existe. A cultura de Edith Piaf já desapareceu. A cultura dos Ch’tis, que os estrangeiros conhecem através dos filmes, já não existe, desapareceu há meio século.
Essa cultura francesa clássica desapareceu, os jovens não a conhecem. A idéia de preservá-la me parece algo equivocado, porque esse patrimônio não tem mais vida.
Hoje, a cultura popular na França já é uma cultura mestiça. Basta ver os discos, as músicas, ela são uma mistura franco-africana. E a maneira dos jovens se vestirem é uma cópia das culturas populares dos Estados Unidos. Esse medo é sobretudo a falta de modelos. A França não sabe como se orientar nessa nova paisagem.
A miscigenação étnica não assusta?
Gruzinski: Acho que não. Quando há uma manifestação racista no futebol, imediatamente a televisão mostra e aparece uma série de mecanismos muito fortes de reação. Basta uma palavra racista, um escândalo, para que a mídia denuncie.
As novas leis também são eficazes para limitar toda forma de racismo. No mundo dos jovens, as músicas e a maneira de vestir estão criando uma cultura mestiça.
O problema que vejo é na parte mais velha da população, que é rica, aposentada, pertence ao mundo antigo e é ali que existe uma reação. Os políticos também ainda não conseguem pensar uma sociedade francesa como uma sociedade mesclada, misturada.
Por quê?
Gruzinski: A formação intelectual deles é de uma França monolítica e branca. A França de Michel Foucault não é uma França mestiça, nem a França de Deleuze, nem a França de Baudrillard, nem a de Jean-Paul Sartre.
Aquela França tinha problemas sociais e econômicos, mas não tinha diferenças culturais. Isso quer dizer que, para nós, intelectuais, como para os políticos, os instrumentos à nossa disposição correspondem a uma sociedade que já não existe. Isso provoca medo e desorientação.
Não há na França reações violentas de guetos, mas há preocupação, porque estamos entrando num mundo para o qual não temos as chaves. O Brasil tem as chaves, o México tem as chaves.
Como seria a construção dessas chaves na França?
Gruzinski: O problema é duplo, porque é a relação com franceses que procedem de outras civilizações, sem falar do fato de que a França também já é parte da Europa.
Para mim, como historiador, um caminho seria a construção de uma memória européia aberta para o mundo. A França não vai resolver sozinha. O desafio é duplo. É a relação com homens e mulheres que chegam de outros mundos, mas também a convivência com os belgas, italianos, alemães, portugueses, espanhóis. Como criar uma memória histórica comum?
Então, o desafio é ao mesmo tempo interno e externo às fronteiras de cada país?
Gruzinski: O problema não é saber apenas como um francês branco, de origem cristã, vai conviver com o magrebino ou africano, mas também como vai conviver com o polonês, com o italiano.
O problema é que a escola também não prepara nem forma cidadãos europeus. O cidadão europeu tem que ser inventado e, para isso, temos que religar constantemente a Europa com o resto do mundo. E o Brasil é parte da história européia.
Em que sentido?
Gruzinski: Não no sentido colonial. Mas o Brasil é uma manifestação da Europa nos seus contatos com o mundo índio e o mundo africano.
Vocês são um dos espelhos, com o México e os Estados Unidos. E não podemos imaginar uma história européia desligada dos laços com a América, a África e a Ásia. Isso não quer dizer, como antes, a reivindicação de um passado civilizador. De jeito nenhum. Mas quer dizer que nós temos responsabilidades.
O Brasil não é a Europa, mas fala português. O Brasil faz parte do mundo ocidental. Um cidadão europeu tem que levar em conta as raízes americanas, africanas e asiáticas. Mas sobretudo americanas.
Como o sr. analisa o pensamento de Gilberto Freyre? Como resumiria a mestiçagem brasileira e como vê o racismo no Brasil, que insistimos em negar, mas está muito perceptível nas relações sociais?
Gruzinski: Não gosto da idéia de que um francês possa opinar sobre o Brasil e decidir se os brasileiros são racistas ou não. Tenho umas idéias mais precisas sobre o México, porque vivi lá muito tempo.
Gilberto Freyre é muito importante. A contribuição do Brasil, da América Latina, não é unicamente na experiência da mestiçagem, mas também do pensamento da mestiçagem.
Para nós, a prioridade é aprender que o Brasil produz também intelectuais, conceitos e idéias, não unicamente música. E, nesse caso, se tentamos pensar o que é a mestiçagem como processo e mistura étnica e cultural, não são muitos os pensadores no planeta.
Há pensadores no Brasil, como Sergio Buarque de Holanda e Gilberto Freyre, e no México, como Gonzalo Aguirre Beltran, que nos podem ajudar numa reflexão intelectual sobre o processo.
E, para mim, antes de discutir a validade das hipóteses e das idéias de Freyre, é fundamental dizer por que nos interessa a experiência latino-americana: pelo fato de ser uma experiência de práticas e de idéias.
Então, a relação com a América Latina se inverte. Para os europeus, é a oportunidade de aproveitar esse patrimônio intelectual, de todas as reflexões sobre a mestiçagem na constituição do Brasil. Mas também toda a contribuição dos pensadores do México e do Peru.
Isso é bastante difícil explicar aos europeus: que os latino-americanos podem também pensar, ter uma contribuição teórica fundamental para hoje. Mas o único continente que tem experiência da mestiçagem planetária é a América Latina. Não aconteceu na África, tampouco na Ásia. A mistura de ameríndios, europeus, africanos e asiáticos é uma experiência do Brasil, do México, da Argentina e dos Estados Unidos.
Como o sr. vê as mestiçagens que estão se produzindo na Europa, com os muçulmanos?
Gruzinski: Os muçulmanos europeus são completamente ocidentalizados. Não praticam um islã clássico, tradicional.
Mas em algumas cidades francesas há uma reação à construção de mesquitas.
Gruzinski: É verdade. Mas devemos pensar que esses muçulmanos são europeus, nascidos na Europa e praticam um islã ocidentalizado. Não há uma islamofobia na França. Eu também me posiciono contra as mesquitas por uma questão de laicidade.
O problema não é que o islã esteja ameaçando o cristianismo. O problema é que um país como a França pensava ter solucionado a questão das religiões controlando o catolicismo e mantendo-o numa zona da vida privada, com a separação da Igreja e do Estado. Agora reaparece a questão das religiões. A oposição ao islã é que ele recoloca essa questão a um país laico.
A separação da igreja e do Estado, com a lei de 1905, foi feita por pressão dos judeus e dos protestantes, em reação à posição de hegemonia do catolicismo. Em 1905, a situação estava resolvida. Ela agora surge de novo.
Mas a construção de mesquitas não seria bom para circunscrever a prática religiosa dentro dos templos e não trazê-la para o espaço público? Não ficaria mais fácil controlar a laicidade?
Gruzinski: Não sei. Politicamente, o eleitorado de origem muçulmana é importante. Há uma vontade de controlar e uma vontade de captar. Por outro lado, podemos imaginar uma secularização do islã, que terminará como o catolicismo ou o protestantismo, ou seja, invisível na paisagem.
Acho que exageramos muito o fundamentalismo islâmico, e não vemos o islã completamente afrancesado, invisível, dos muçulmanos de tradição e que não praticam.
Durante vários séculos, as Américas foram vistas pelos olhos dos viajantes, fotógrafos e pintores europeus. Na exposição, o sr. mostra que a Ásia tem agora um novo olhar sobre a América, e a exposição exibe filmes que provam isso. Como o cinema mostra o olhar dos asiáticos sobre a América?
Gruzinski: O olhar sobre a América, em parte e cada vez mais, é asiático. Ou seja, a construção de um imaginário do que é a América, hoje não passa através da Europa e nem unicamente através dos cineastas do continente americano, mas cada vez mais por esta capacidade dos asiáticos de ver, de olhar e de criar imagens desse continente americano.
Ou seja, parto do princípio de que, hoje, a máquina das mestiçagens, o pólo mais dinâmico, e talvez ameaçador, é a Ásia. Essa riqueza incrível das mestiçagens do Brasil é um fato do passado. Essas músicas são do passado, são músicas do século XX.
Esse mundo que está construindo formas novas, imaginários novos, se deslocou para a Ásia, e nós vemos isso através dessa produção cinematográfica, que pode ser de alta qualidade, mas também muito popular.
Em Belém do Pará, os DVDs mais alugados são asiáticos. E os mangás japoneses são o que os jovens lêem hoje. Nós, intelectuais, não nos damos conta da capacidade do mundo asiático de controlar o imaginário, de formar esse imaginário.
Quer dizer que, hoje, o lugar onde se fazem as mestiçagens mais intensamente é na Ásia?
Gruzinski: Sim, é onde está o poder econômico, financeiro e industrial mais forte, na China. O "Le Monde" dizia há pouco que a China é o ateliê do mundo. Vi também recentemente um desenho do presidente chinês ao lado de Bush, pequenininho. Esse desenho queria dizer que o tempo de Bush acabou.
Acho que, no nível cultural, artístico e cinematográfico, vemos essa chegada contínua de filmes e de obras de arte que pouco a pouco aparecem capazes de reinventar todas as formas de cinema, misturando as cinematografias asiáticas, que são já velhas, com as americanas ou européias.
É uma capacidade de antropofagia. Os antropófagos, dos quais falaram muito bem os modernistas do Brasil, nos anos 20, se deslocaram. É a Ásia que faz a antropofagia agora.
E em que sentido isso seria uma ameaça?
Gruzinski: Admiro muito as cinematografias asiáticas, mas a China é um país muito perigoso. E vemos isso a cada dia. O país que tem mais peso no mundo, maior crescimento, maior riqueza, é uma ditadura totalitária. Isso é uma coisa impressionante. Talvez um dia lembremos com saudade da hegemonia norte-americana, com seu humanismo.
Publicado em 27/8/2008
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LeneideDuarte-Plon
É jornalista e vive em Paris.
Para o historiador francês Serge Gruzinski, o discurso e as medidas antiimigratórias na Europa, promovidos por políticos populistas, ocultam as necessidades reais do capitalismo europeu de uma mão-de-obra barata, o que é propiciado pelos imigrantes de vários países que aportam ao continente.
Gruzinski é curador da exposição “Planète Métisse – To Mix or Not to Mix” (Planeta Mestiço - Misturar ou Não Misturar), em exibição no Museu do Quai Branly, em Paris. Na sua opinião, a cultura popular européia é hoje mais "mestiça" do que a brasileira ou americana.
"Os estrangeiros sempre chegaram à Europa, mas o problema agora é que esses novos mestiços não são estrangeiros. Eles são franceses como o francês branco e de olhos azuis. A tradição intelectual, política e educativa francesa, não tem nenhuma resposta para essa nova situação", diz o historiador. "A cultura francesa clássica já não existe. A cultura de Edith Piaf já desapareceu. Hoje, a cultura popular na França já é uma cultura mestiça."
Na exposição, os objetos contam a história de encontros de culturas que produzem uma nova cultura: mestiça. Entre os produtos culturais mestiços, o historiador escolheu a música brasileira, representada por doze diferentes manifestações musicais.
Especialista na história das Américas, autor de “História do Novo Mundo" (Edusp) e de "O Pensamento Mestiço" (Companhia das Letras), entre outros livros, Gruzinski conhece muito bem o Brasil, para onde viaja freqüentemente para participar de seminários, e fala perfeitamente o português.
Ele é também diretor de pesquisa no Centre Nacional de Recherches Scientifiques (CNRS) e diretor de estudos na Ecole des Hautes Etudes en Sciences Sociales (EHESS).
Na entrevista a seguir, dada em sua sala de trabalho na EHESS, Gruzinski fala da exposição, do "pensamento mestiço" e de novas formas de mestiçagens que se dão no solo europeu e no mundo.
Para ele, a Ásia é o novo celeiro das mestiçagens. "Os antropófagos, dos quais falaram muito bem os modernistas do Brasil, nos anos 20, se deslocaram. É a Ásia que faz a antropofagia agora", afirma.
*
O sr. é o autor de um livro intitulado "O Pensamento Mestiço". Como se forma esse pensamento? Ele é o resultado do encontro de duas ou mais culturas, quaisquer que elas sejam elas?
Serge Gruzinski: De uma maneira um pouco paradoxal, eu diria que as culturas nunca se encontram. As culturas não existem. Só existem seres, homens e mulheres que se encontram. E as coisas que se encontram são sempre fragmentos de culturas.
A idéia de que existem a cultura francesa e a cultura brasileira e que essas culturas se encontram é uma coisa completamente alegórica, é uma fantasia, uma imaginação.
São indivíduos ou grupos que se encontram e que misturam, não o conjunto da cultura, mas elementos escolhidos ou não de ambas as culturas. Essas se encontram através de indivíduos e sempre em contextos históricos que, muitas vezes, são assimétricos, de desigualdade, de relação de colonização.
Por exemplo, a cultura francesa quando considera as culturas latino-americanas “exóticas” não impede que haja comunicação entre o mundo latino-americano e a França, mas tem uma posição hierárquica que pensa a cultura francesa como cultura universal e a outra cultura, seja mexicana seja brasileira, como uma cultura “exótica”.
Existem dois níveis bem distintos. De um lado, as práticas culturais, ou seja misturar a gastronomia, a alimentação ou até mesmo as músicas. Já o pensamento mestiço é uma coisa mais complexa, porque supõe a mistura de mecanismos intelectuais diversos.
Por exemplo?
Gruzinski: Ele é o produto de pelo menos duas maneiras de pensar o mundo com instrumentos intelectuais distintos. Ou seja, o pensamento mestiço supõe um certo grau de consciência, não só o fenômeno de misturar, mas supõe uma capacidade de eleger nas duas culturas certos elementos e combiná-los.
Isso supõe toda uma estratégia. E razões bem precisas para fazê-lo. No caso dos índios do México, que estudei, era uma maneira de resistência, de conservar elementos das culturas pré-hispânicas, integrando-as aos elementos europeus, para encontrar uma forma de integração na nova sociedade colonial sem perder e esquecer todo o patrimônio pré-hispânico.
Então, temos esse pensamento mestiço que corresponde a um tipo de estratégia voluntária, deliberada, calculada. Também a estratégia da Igreja Católica de misturar elementos católicos com elementos locais em toda a América Latina para enraizar o seu culto é uma forma de pensamento mestiço. Escolher, misturar para conseguir os sincretismos. Em certo momento, esse movimento de manipulação escapa à Igreja Católica, e os sincretismo têm vida própria.
O que é um "objeto mestiço"?
Gruzinski: A exposição é num lugar que conserva objetos, o Museu do Quai Branly. A idéia era utilizar objetos para contar, explicar e interpretar o processo da mestiçagem. Um objeto mestiço é aquele que pertence a várias civilizações ao mesmo tempo.
Por exemplo, ele é africano e europeu, americano e europeu, asiático e americano. Temos na exposição dois objetos que são turcos e da China ao mesmo tempo.
O tema da exposição são as mestiçagens planetárias, ou seja, aquelas surgidas entre América, África, Ásia e Europa. São formas de mestiçagens que correspondem atualmente à situação européia com grupos africanos ou asiáticos formando a nova civilização européia.
Por exemplo, a ópera-balé "Padmavâti", de Albert Roussel, um autor francês do início do século XX. Essa ópera-balé estreou na Ópera de Paris em 1923. Neste ano (2008), ela foi remontada em Paris, e o diretor foi um cineasta famoso de Bollywood, da Índia. Ou seja, música francesa e direção de um cineasta indiano.
Essa é a nova cultura parisiense, mistura entre as coisas francesas e as outras culturas. "Padmavâti" é um objeto mestiço, uma obra mestiça.
O catálogo da exposição explica que a música é, por excelência, o recipiente da mestiçagem. Na exposição, o Brasil é apresentado como uma síntese da música mestiça, com todos os seus ritmos e gêneros. Por que a exposição só mostra a música brasileira, entre tantas outras músicas mestiças que o catálogo cita?
Gruzinski: Por várias razões. Primeiramente, pela enorme contribuição da música brasileira à música do século 20. E no caso do Brasil temos rapidamente a passagem da música popular à música nacional, com o samba e a "world music", ou seja, a recuperação da música do Brasil nesse "melting pot" das mestiçagens internacionais das músicas.
Há toda essa dimensão do passado histórico africano da escravidão e da criação de uma cultura nacional e popular a partir da música brasileira, que, com Carmen Miranda e o que se seguiu a ela, acaba tornando-se um produto industrial, uma música internacional e parte da "world music".
É óbvio que o jazz, o gospel, as músicas da Argentina e do México são também material interessante. O caso do Brasil nos interessou para podermos dar uma idéia, ainda que superficial, de uma genealogia, de um processo que começa na época colonial e de uma mestiçagem que se enriquece e muda continuamente.
No caso do Brasil, o que é extraordinário é que vemos que ele tem essa capacidade de reconstituir formas mestiças, recriar formas mestiças. Há uma recriação constante. As doze músicas mostradas no museu dão uma idéia de um processo que começou e continua, é permanente.
Também é importante recordar que, por trás dessas músicas, e também de todo o continente americano, temos o fenômeno da escravidão. A exposição pretende contribuir para desenvolver um olhar mais crítico sobre o passado, sobre a realidade cultural.
A gente deve saber que as mestiçagens do Brasil e da América espanhola tiveram um preço altíssimo, que foi a deportação sistemática dos povos africanos para o continente americano.
A idéia é levar o público a pensar os dois elementos, a riqueza das mestiçagens, mas também o contexto histórico, para evitar as ilusões que levam a pensar que a mistura das culturas significa igualdade.
Sabemos que, no caso do Brasil, a circulação entre as culturas e as misturas podem corresponder a uma situação de injustiça social total. Existe esse perigo de pensar que podemos resolver as fraturas sociais com as mestiçagens.
O governo da França gosta de utilizar esse tipo de ilusão, falando da liberdade de culturas e da mistura das culturas, para não resolver os problemas reais, que são sociais e econômicos.
As políticas antiimigração na Europa significam que os países temem a mestiçagem cultural e étnica ou são simplesmente um problema econômico e demográfico?
Gruzinski: Diria que é um tema extremamente confuso, atualmente. Existe um discurso antiimigração, mas por outro lado o capitalismo europeu, o desenvolvimento da União Européia precisa de mão-de-obra, e barata.
No discurso populista -dos políticos, da imprensa- aparece o medo. Num nível real, o capitalismo europeu tem necessidades econômicas que o levam a introduzir cada vez mais africanos, asiáticos e até ameríndios, que vêm da América Latina para a Espanha.
Há esse duplo aspecto do fenômeno. Nesse populismo não há somente um discurso político superficial. É verdade que os europeus estão entrando numa sociedade completamente distinta.
Nela, existem turcos, magrebinos (árabes do norte da África) e negros africanos que nasceram no continente europeu, o que significa que hoje a Europa é um continente muito mais mestiço do que o Brasil. O Brasil tem as mestiçagens do passado. A Europa está entrando numa fase em que grande parte da população é mestiça.
Basta ver a televisão, quem são os jovens da periferia de Paris e das grandes cidades? São magrebinos e negros. Moro no XV arrondissement (bairro parisiense) e vejo que os jovens são negros.
Parte da população européia já é africana ou asiática, e muitos têm a religião muçulmana. E isso suscita medo em muitas pessoas. A Europa não estava acostumada a conviver com a mestiçagem nascida na Europa.
Os estrangeiros sempre chegaram à Europa, mas o problema agora é que esses novos mestiços não são estrangeiros. Eles são franceses como o francês branco e de olhos azuis. Eles nasceram na República, são africanos ou asiáticos completamente mestiços, ocidentalizados, afrancesados. A tradição intelectual, política e educativa francesa, não tem nenhuma resposta para essa nova situação.
As respostas estão sendo construídas?
Gruzinski: É preciso construir, mas o problema é que muitas vezes a construção se faz através do populismo, manipulando os medos, não para encontrar novas formas de convivência, mas para captar eleitores, votos. Não para desenvolver políticas novas, mas para tentar provocar reações passageiras, para assegurar o poder de um grupo ou de outro.
O francês médio, branco tem medo da miscigenação étnica ou quer preservar a cultura francesa? Qual é o fantasma deste francês médio?
Gruzinski: A cultura francesa clássica já não existe. A cultura de Edith Piaf já desapareceu. A cultura dos Ch’tis, que os estrangeiros conhecem através dos filmes, já não existe, desapareceu há meio século.
Essa cultura francesa clássica desapareceu, os jovens não a conhecem. A idéia de preservá-la me parece algo equivocado, porque esse patrimônio não tem mais vida.
Hoje, a cultura popular na França já é uma cultura mestiça. Basta ver os discos, as músicas, ela são uma mistura franco-africana. E a maneira dos jovens se vestirem é uma cópia das culturas populares dos Estados Unidos. Esse medo é sobretudo a falta de modelos. A França não sabe como se orientar nessa nova paisagem.
A miscigenação étnica não assusta?
Gruzinski: Acho que não. Quando há uma manifestação racista no futebol, imediatamente a televisão mostra e aparece uma série de mecanismos muito fortes de reação. Basta uma palavra racista, um escândalo, para que a mídia denuncie.
As novas leis também são eficazes para limitar toda forma de racismo. No mundo dos jovens, as músicas e a maneira de vestir estão criando uma cultura mestiça.
O problema que vejo é na parte mais velha da população, que é rica, aposentada, pertence ao mundo antigo e é ali que existe uma reação. Os políticos também ainda não conseguem pensar uma sociedade francesa como uma sociedade mesclada, misturada.
Por quê?
Gruzinski: A formação intelectual deles é de uma França monolítica e branca. A França de Michel Foucault não é uma França mestiça, nem a França de Deleuze, nem a França de Baudrillard, nem a de Jean-Paul Sartre.
Aquela França tinha problemas sociais e econômicos, mas não tinha diferenças culturais. Isso quer dizer que, para nós, intelectuais, como para os políticos, os instrumentos à nossa disposição correspondem a uma sociedade que já não existe. Isso provoca medo e desorientação.
Não há na França reações violentas de guetos, mas há preocupação, porque estamos entrando num mundo para o qual não temos as chaves. O Brasil tem as chaves, o México tem as chaves.
Como seria a construção dessas chaves na França?
Gruzinski: O problema é duplo, porque é a relação com franceses que procedem de outras civilizações, sem falar do fato de que a França também já é parte da Europa.
Para mim, como historiador, um caminho seria a construção de uma memória européia aberta para o mundo. A França não vai resolver sozinha. O desafio é duplo. É a relação com homens e mulheres que chegam de outros mundos, mas também a convivência com os belgas, italianos, alemães, portugueses, espanhóis. Como criar uma memória histórica comum?
Então, o desafio é ao mesmo tempo interno e externo às fronteiras de cada país?
Gruzinski: O problema não é saber apenas como um francês branco, de origem cristã, vai conviver com o magrebino ou africano, mas também como vai conviver com o polonês, com o italiano.
O problema é que a escola também não prepara nem forma cidadãos europeus. O cidadão europeu tem que ser inventado e, para isso, temos que religar constantemente a Europa com o resto do mundo. E o Brasil é parte da história européia.
Em que sentido?
Gruzinski: Não no sentido colonial. Mas o Brasil é uma manifestação da Europa nos seus contatos com o mundo índio e o mundo africano.
Vocês são um dos espelhos, com o México e os Estados Unidos. E não podemos imaginar uma história européia desligada dos laços com a América, a África e a Ásia. Isso não quer dizer, como antes, a reivindicação de um passado civilizador. De jeito nenhum. Mas quer dizer que nós temos responsabilidades.
O Brasil não é a Europa, mas fala português. O Brasil faz parte do mundo ocidental. Um cidadão europeu tem que levar em conta as raízes americanas, africanas e asiáticas. Mas sobretudo americanas.
Como o sr. analisa o pensamento de Gilberto Freyre? Como resumiria a mestiçagem brasileira e como vê o racismo no Brasil, que insistimos em negar, mas está muito perceptível nas relações sociais?
Gruzinski: Não gosto da idéia de que um francês possa opinar sobre o Brasil e decidir se os brasileiros são racistas ou não. Tenho umas idéias mais precisas sobre o México, porque vivi lá muito tempo.
Gilberto Freyre é muito importante. A contribuição do Brasil, da América Latina, não é unicamente na experiência da mestiçagem, mas também do pensamento da mestiçagem.
Para nós, a prioridade é aprender que o Brasil produz também intelectuais, conceitos e idéias, não unicamente música. E, nesse caso, se tentamos pensar o que é a mestiçagem como processo e mistura étnica e cultural, não são muitos os pensadores no planeta.
Há pensadores no Brasil, como Sergio Buarque de Holanda e Gilberto Freyre, e no México, como Gonzalo Aguirre Beltran, que nos podem ajudar numa reflexão intelectual sobre o processo.
E, para mim, antes de discutir a validade das hipóteses e das idéias de Freyre, é fundamental dizer por que nos interessa a experiência latino-americana: pelo fato de ser uma experiência de práticas e de idéias.
Então, a relação com a América Latina se inverte. Para os europeus, é a oportunidade de aproveitar esse patrimônio intelectual, de todas as reflexões sobre a mestiçagem na constituição do Brasil. Mas também toda a contribuição dos pensadores do México e do Peru.
Isso é bastante difícil explicar aos europeus: que os latino-americanos podem também pensar, ter uma contribuição teórica fundamental para hoje. Mas o único continente que tem experiência da mestiçagem planetária é a América Latina. Não aconteceu na África, tampouco na Ásia. A mistura de ameríndios, europeus, africanos e asiáticos é uma experiência do Brasil, do México, da Argentina e dos Estados Unidos.
Como o sr. vê as mestiçagens que estão se produzindo na Europa, com os muçulmanos?
Gruzinski: Os muçulmanos europeus são completamente ocidentalizados. Não praticam um islã clássico, tradicional.
Mas em algumas cidades francesas há uma reação à construção de mesquitas.
Gruzinski: É verdade. Mas devemos pensar que esses muçulmanos são europeus, nascidos na Europa e praticam um islã ocidentalizado. Não há uma islamofobia na França. Eu também me posiciono contra as mesquitas por uma questão de laicidade.
O problema não é que o islã esteja ameaçando o cristianismo. O problema é que um país como a França pensava ter solucionado a questão das religiões controlando o catolicismo e mantendo-o numa zona da vida privada, com a separação da Igreja e do Estado. Agora reaparece a questão das religiões. A oposição ao islã é que ele recoloca essa questão a um país laico.
A separação da igreja e do Estado, com a lei de 1905, foi feita por pressão dos judeus e dos protestantes, em reação à posição de hegemonia do catolicismo. Em 1905, a situação estava resolvida. Ela agora surge de novo.
Mas a construção de mesquitas não seria bom para circunscrever a prática religiosa dentro dos templos e não trazê-la para o espaço público? Não ficaria mais fácil controlar a laicidade?
Gruzinski: Não sei. Politicamente, o eleitorado de origem muçulmana é importante. Há uma vontade de controlar e uma vontade de captar. Por outro lado, podemos imaginar uma secularização do islã, que terminará como o catolicismo ou o protestantismo, ou seja, invisível na paisagem.
Acho que exageramos muito o fundamentalismo islâmico, e não vemos o islã completamente afrancesado, invisível, dos muçulmanos de tradição e que não praticam.
Durante vários séculos, as Américas foram vistas pelos olhos dos viajantes, fotógrafos e pintores europeus. Na exposição, o sr. mostra que a Ásia tem agora um novo olhar sobre a América, e a exposição exibe filmes que provam isso. Como o cinema mostra o olhar dos asiáticos sobre a América?
Gruzinski: O olhar sobre a América, em parte e cada vez mais, é asiático. Ou seja, a construção de um imaginário do que é a América, hoje não passa através da Europa e nem unicamente através dos cineastas do continente americano, mas cada vez mais por esta capacidade dos asiáticos de ver, de olhar e de criar imagens desse continente americano.
Ou seja, parto do princípio de que, hoje, a máquina das mestiçagens, o pólo mais dinâmico, e talvez ameaçador, é a Ásia. Essa riqueza incrível das mestiçagens do Brasil é um fato do passado. Essas músicas são do passado, são músicas do século XX.
Esse mundo que está construindo formas novas, imaginários novos, se deslocou para a Ásia, e nós vemos isso através dessa produção cinematográfica, que pode ser de alta qualidade, mas também muito popular.
Em Belém do Pará, os DVDs mais alugados são asiáticos. E os mangás japoneses são o que os jovens lêem hoje. Nós, intelectuais, não nos damos conta da capacidade do mundo asiático de controlar o imaginário, de formar esse imaginário.
Quer dizer que, hoje, o lugar onde se fazem as mestiçagens mais intensamente é na Ásia?
Gruzinski: Sim, é onde está o poder econômico, financeiro e industrial mais forte, na China. O "Le Monde" dizia há pouco que a China é o ateliê do mundo. Vi também recentemente um desenho do presidente chinês ao lado de Bush, pequenininho. Esse desenho queria dizer que o tempo de Bush acabou.
Acho que, no nível cultural, artístico e cinematográfico, vemos essa chegada contínua de filmes e de obras de arte que pouco a pouco aparecem capazes de reinventar todas as formas de cinema, misturando as cinematografias asiáticas, que são já velhas, com as americanas ou européias.
É uma capacidade de antropofagia. Os antropófagos, dos quais falaram muito bem os modernistas do Brasil, nos anos 20, se deslocaram. É a Ásia que faz a antropofagia agora.
E em que sentido isso seria uma ameaça?
Gruzinski: Admiro muito as cinematografias asiáticas, mas a China é um país muito perigoso. E vemos isso a cada dia. O país que tem mais peso no mundo, maior crescimento, maior riqueza, é uma ditadura totalitária. Isso é uma coisa impressionante. Talvez um dia lembremos com saudade da hegemonia norte-americana, com seu humanismo.
Publicado em 27/8/2008
.
LeneideDuarte-Plon
É jornalista e vive em Paris.
Resenha do livro de Gruzinski: A guerra das imagens
História, imagem e narrativas
No 4, ano 2, abril/2007 – ISSN 1808-9895
http://www.historiaimagem.com.br
206
GRUZINKI, Serge. A guerra das imagens: de Cristóvão Colombo a
Blade Runner (1492-2019). Trad. Rosa F. d’Aguiar. São Paulo:
Companhia das Letras, 2006. 348 p.
Thiago Juliano Sayão
Doutorando em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS
thiagosayao@hotmail.com
Este livro é apresentado pelo autor como o “último capítulo de uma viagem de
historiador ao México espanhol” (p.21). Publicado originalmente na França em 1990,
La guerre des images (A guerra das imagens) chega agora ao público brasileiro,
traduzido por Rosa Freire d’Aguiar, como a continuação dos estudos sobre o processo
de colonização mexicana, que já contava com: Les Hommes-dieux du Méxique (Os
homens-deuses do México) - 1985; La colonisation de l’imaginaire (A colonização do
imaginário) – 1988; e, De l’idolâtrie (Sobre a idolatria) - 1988. Todas obras de Serge Gruzinski, historiador, paleógrafo e professor na École des Hautes Études em Sciences Sociale (EHESS), que também dirige um núcleo de pesquisas no Centre National de la Recherche Scientifique (CNRS).
Nas primeiras páginas do livro, a paisagem da cidade futurista do filme Blade
Runner (1982) é comparada com os santuários coloniais de Teotihuacán. Ambas as
representações trazem imagens portadoras de sentidos ambíguos. Na cidade fictícia, as
fronteiras entre andróides e humanos apresentam-se indefiníveis em meio à confusão do
mundo maquinal. Nos santuários, imagens de santos em altares barrocos baralham-se
com ícones do mundo pré-colombiano. Assim, entre as imagens cinematográficas da
ficção científica e as imagens do passado colonial mexicano, o autor nos faz pensar
sobre a natureza híbrida das imagens do mundo contemporâneo. “A falsa imagem, a
réplica demasiado perfeita, mais real que o original, a criação demiúrgica e a violência assassina da destruição iconoclasta, a imagem portadora de história e de tempo, História, imagem e narrativas carregada de saberes inacessíveis” (p.14), são tópicos discutidos ao longo do livro pelo historiador.
Serge Gruzinski analisa uma série de discursos acerca das imagens sacras do
México colonial. Desde as primeiras décadas do século XVI, os colonizadores
empreenderam uma verdadeira guerra das imagens, na tentativa de substituir imagens
dos povos indígenas por ícones católicos. Contudo, em meio aos avanços das práticas
evangelizadoras, os religiosos introduziram na Nova Espanha “o essencial da imagem
no Ocidente” (p.135): imagem para recordar (“memória”); imagem enquanto
representação (“espelho”); e, imagem para ser assistida, comemorada (“espetáculo”).
Se, por um lado, a divulgação das imagens dos colonizadores é apresentada
enquanto dispositivo de dominação simbólica e real, por outro, agiu como impulso ao
processo de mistura cultural entre espanhóis e indígenas. Neste sentido, o autor se
coloca numa posição intermediária; sua narrativa não privilegia nem as conquistas da
civilização no Novo Mundo, tão pouco uma história dos “vencidos”, dos povos que
teriam desaparecido. Ao invés de reforçar a relação desigual e hierárquica entre
colonizadores e colonizados, são evidenciadas, através das imagens, as diversas nuanças das relações culturais no Novo Mundo. Portanto este livro contempla os estudos culturais sobre colonização na América espanhola, que tem como referência imediata A colonização do Imaginário. Inclusive, como aponta o autor, as referências bibliográficas gerais de A guerra das imagens estão incluídas no primeiro livro dos estudos culturais sobre o México espanhol.
O contato entre os dois mundos colocou em evidência distintas percepções do
real, diferentes imaginários, segundo Gruzinski. As percepções cristãs acerca do
sobrenatural passaram a conviver com outras representações do mundo dos espíritos.
Neste processo, as imagens indígenas, em específico os objetos de culto, foram alvo da censura, da incompreensão e da intolerância religiosa.
Serge Gruzinski em uma análise acurada dá a ver o movimento pelo qual
passaram as interpretações das imagens religiosas indígenas. Da “sensibilidade
etnográfica” – presente nos relatos de Cristóvão Colombo – a “domesticação do objeto”
– iniciada com Pedro Mártir, o autor nos mostra o processo móvel de significação das
imagens.
Nos relatos de Colombo os objetos de culto indígena eram denominados
“cémies”, que, da língua Taino, significava um objeto que tinha o poder de guardar as
memórias dos antepassados. Esta forma de tratamento preserva, segundo o autor, a
individualidade, a especificidade do artefato cultural que era descrito. Por outro lado, membros da igreja ou representantes do governo espanhol, preocupados mais com o
controle político e ideológico da colônia, passaram a tratar as imagens indígenas não
mais como artefatos raros, mas enquanto objetos de culto demoníaco. Nesse sentido, a
mudança discursiva acerca das imagens é lida como vestígio das transformações sócioculturais do México espanhol. O cémi, uma primeira apropriação das imagens
indígenas, dá lugar ao “ídolo”. Nesse deslocamento de sentido, do cémi ao ídolo, as
imagens indígenas perdem seu exotismo etnográfico e passam a representar uma
ameaça aos projetos colonial espanhol e expansionista católico. Iniciou-se assim a
negação e destruição de imagens indígenas (iconoclastia), ao mesmo tempo em que se
iniciou a produção e divulgação em massa das imagens eclesiásticas.
Gruzinski ao descrever a emergência e divulgação das imagens de santos
(esculturas, afrescos e pinturas) transfere para seu texto – de maneira intencional ou fortuita – uma sensação de cansaço, em função de uma narrativa carregada de imagens religiosas. Parece que a forma do texto está em sintonia com a história narrada. A seqüência de santos barrocos, que surge no texto, nos faz pensar no caráter repetitivo da divulgação de imagens barrocas. Uma “epidemia de imagens” (p.256), segundo o autor,invadiu o cotidiano mexicano como uma tentativa de domesticação dos sentidos. Por meio de imagens procurava-se influenciar os povos da Nova Espanha a agir de determinada maneira, mas se estava longe de um controle hegemônico sobre as práticas e representações de mundo. Do cémi ao ídolo encontramos ações que buscavam mapear, nomear, significar, condenar e substituir imagens; contudo, a guerra de imagens foi feita, sobretudo, de acomodações e adaptações.
Aqui nos aproximamos das categorias centrais de análise usadas pelo autor. Para
se opor a noção de “substituição”, Gruzinski utiliza os termos “sincretismo” e
“acomodação”, a fim de se fazer notar o processo de mistura cultural que se deu entre
espanhóis e indígenas. A identidade ambígua das imagens produzidas no México
colonial, aponta para uma história viva e movediça. “Desde o início da conquista
espanhola, imagens cristãs coexistiam com ídolos entre inúmeros idólatras” (p.93). Em
meio ao processo de circulação cultural, altares eram ornamentados com cruzes, santos
e “ídolos”, e, nos cultos as divisas entre magia e religião desapareciam. “O consumo de ervas ocorre ao pé dos altares domésticos, diante dos olhos da Virgem, de Cristo e dos santos que recebem a homenagem dos participantes, mestiços índios e mulatos” (p.233). Símbolos do catolicismo eram incorporados ao universo onírico originado pelo
consumo de alucinógenos (“peyotl”). As imagens barrocas, que se destacavam pela
riqueza decorativa, entravam na composição cênica de rituais religiosos que escapavam
do controle dos evangelizadores. Neste sentido as recepções que as imagens cristãs
tiveram no México colonial, são analisadas como práticas inventivas, nas palavras do
autor: “manobras de apropriação”.
A recepção das imagens cristãs no México colonial raramente se confunde
com uma adesão apática ou uma submissão passiva, apesar da eficácia e
supremacia do dispositivo barroco, apesar dos apoios institucionais, materiais
e socioculturais que garantem maciçamente sua perenidade e ubiqüidade. As
populações reagem às imagens por incessantes manobras de apropriação.
(p.240) Ao longo dos estudos sobre o processo de ocidentalização o conceito de
mestiçagem ganhou força, até a publicação, em 1999, do livro La pensée métisse1 (O
pensamento mestiço). Para que possamos entender o conceito de mestiçagem
desenvolvido pelo historiador francês, devemos levar em conta as misturas culturais
desencadeadas pelos encontros, choques, entre as diferentes sociedades indígenas e
européias. No livro acima citado o autor diferencia hibridismo de mestiçagem, enquanto a hibridação consiste nas misturas culturais em uma mesma civilização (dentro da Europa, por exemplo), a mestiçagem se deu entre sociedades díspares, que, no caso dos estudos do México espanhol, travaram contatos a partir do século XVI. Em meio aos (des)encontros surge uma cultura mestiça, constituída em uma “zona” onde idéias e artefatos novos e inusitados são criados. “Em face do mundo indígena do interior do país, enquadrado pelos religiosos e dizimado pelas epidemias, emerge uma sociedade nova, urbana, pluriétnica e européia que – como hoje a nossa – vivem diariamente a experiência das mestiçagens”. (p.137)
Por outro lado, por meio do movimento de circulação cultural percebemos
diferentes usos ou apropriações das imagens. A idéia de circulação e apropriação – que pode ser encontrada em Il formaggio e i vermi (O queijo e os vermes) de Carlos
Ginzburg, livro citado pelo autor – procura trabalhar com o conceito de cultura sob
uma perspectiva relacional. Sob influencia dos estudos antropológicos, a cultura aparece como resultante de relações complexas entre valores e crenças, mas também entre artefatos materiais e instituições. A mestiçagem é percebida, portanto, em meio a relações culturais (religiosas, econômicas, políticas) e de poder: da submissão à arma a sedução da imagem. A noção de mestiçagem, que havia sido trabalhada no começo do século XX por intelectuais como Gilberto Freyre, Sergio Buarque de Holanda e Mário de Andrade para se pensar uma cultura brasileira, ganha força nas análises de Serge Gruzinski sobre o passado colonial da América espanhola, e, nos faz refletir mais uma vez sobre identidade e cultura, tradição e modernidade, em um mundo cada vez mais conectado e saturado de informações visuais.
A guerra real da colonização empreendida no campo simbólico conferiu um
papel de destaque às imagens. Dadas as diferenças lingüísticas entre colonizadores e
indígenas e o baixo letramento da sociedade colonial, as imagens serviam, por um lado, como dispositivo à pedagogia de cristianização, e por outro como uma possibilidade de expressão e criação de “crenças que seria difícil ou perigoso verbalizar” (p.224).
Seja como parte do aparelho de evangelização, seja enquanto expressão do
imaginário popular, as imagens barrocas são identificadas enquanto formadoras de
vínculos sociais no México espanhol. Assim Gruzinski atribui à imagem barroca uma
“função unificadora num mundo cada vez mais mestiço, que mistura as procissões e
encenações oficiais a gama inesgotável de seus divertimentos”. (p.200) A Virgem de
Guadalupe é apresentada, por sua vez, como “a mais prodigiosa das imagens”,
catalisadora dos sentimentos coletivos. A Virgem representava a mãe sedutora “de pele
morena como aquelas amas-de-leite mestiças, indígenas e mulatas que cuidavam das
crianças espanholas em toda a colônia” (p.182). O autor, seguindo os discursos dos
promotores ligados aos processos de inquisições do Santo Ofício, cita o culto a imagem da Virgem como um “nacionalismo embrionário” (p.172).
A divulgação das imagens foi ampla e massificada. Seja em locais públicos, seja
nas esferas do privado. Serge Gruzinski nos leva a conhecer os múltiplos espaços
contaminados por valores estéticos ocidentais. A noção de perspectiva (presente em
pinturas de paisagens renascentistas) passou a fazer parte, por exemplo, das técnicas de “fidelidade da narração pictórica”, que, somando-se as “cores, o nu, o drapeado, a reprodução do rosto e dos cabelos” (p.158) compunham a pintura da Nova Espanha de qualidades estéticas do Ocidente. Os pintores do vice-reinado apenas foram
reconhecidos quando passaram a representar o mundo a partir dos cânones de uma arte
ocidental que privilegiava, entre outros temas, a “docilidade” e o “conformismo”
(p.160). Assim, a suntuosidade da beleza barroca, dos altares de Virgens e santos, era divulgada como forma de combate as imagens indecentes, feias e ridículas do mundo
pré-colombiano. Por sua vez, o autor apresenta a discussão estética sobre as imagens
religiosas em meio ao contexto da contra-reforma. As imagens indígenas foram vistas a
partir de um modelo iconográfico e no momento de lutas contra as heresias.
Portanto este livro privilegia as imagens e suas representações, percebidas
enquanto possibilidade de análise do enfrentamento cultural posto pela colonização. Por sua vez o texto utiliza as questões levantadas no passado para pensar a saturação de imagens no tempo presente. “A embrulhada das referências, a confusão dos registros étnicos e culturais, a superposição da vivência e da ficção, a difusão das drogas, a multiplicação dos suportes da imagem, fazem também dos imaginários barrocos da Nova Espanha uma prefiguração dos imaginários neobarrocos ou pós-modernos que são os nossos” (p.302). A confusão contemporânea, que mistura imagens religiosas a ícones do mundo capitalista televisivo, encontra suas primeiras referências nos sincretismos culturais do século XVI. Se os andróides do filme Blade Runner eram caçados porque não eram humanos, os índios do Novo Mundo, que não tinham alma, foram dizimados, conclui Serge Gruzinski, que nos faz pensar sobre a intolerância no passado e no presente com relação à diferença.
No 4, ano 2, abril/2007 – ISSN 1808-9895
http://www.historiaimagem.com.br
206
GRUZINKI, Serge. A guerra das imagens: de Cristóvão Colombo a
Blade Runner (1492-2019). Trad. Rosa F. d’Aguiar. São Paulo:
Companhia das Letras, 2006. 348 p.
Thiago Juliano Sayão
Doutorando em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS
thiagosayao@hotmail.com
Este livro é apresentado pelo autor como o “último capítulo de uma viagem de
historiador ao México espanhol” (p.21). Publicado originalmente na França em 1990,
La guerre des images (A guerra das imagens) chega agora ao público brasileiro,
traduzido por Rosa Freire d’Aguiar, como a continuação dos estudos sobre o processo
de colonização mexicana, que já contava com: Les Hommes-dieux du Méxique (Os
homens-deuses do México) - 1985; La colonisation de l’imaginaire (A colonização do
imaginário) – 1988; e, De l’idolâtrie (Sobre a idolatria) - 1988. Todas obras de Serge Gruzinski, historiador, paleógrafo e professor na École des Hautes Études em Sciences Sociale (EHESS), que também dirige um núcleo de pesquisas no Centre National de la Recherche Scientifique (CNRS).
Nas primeiras páginas do livro, a paisagem da cidade futurista do filme Blade
Runner (1982) é comparada com os santuários coloniais de Teotihuacán. Ambas as
representações trazem imagens portadoras de sentidos ambíguos. Na cidade fictícia, as
fronteiras entre andróides e humanos apresentam-se indefiníveis em meio à confusão do
mundo maquinal. Nos santuários, imagens de santos em altares barrocos baralham-se
com ícones do mundo pré-colombiano. Assim, entre as imagens cinematográficas da
ficção científica e as imagens do passado colonial mexicano, o autor nos faz pensar
sobre a natureza híbrida das imagens do mundo contemporâneo. “A falsa imagem, a
réplica demasiado perfeita, mais real que o original, a criação demiúrgica e a violência assassina da destruição iconoclasta, a imagem portadora de história e de tempo, História, imagem e narrativas carregada de saberes inacessíveis” (p.14), são tópicos discutidos ao longo do livro pelo historiador.
Serge Gruzinski analisa uma série de discursos acerca das imagens sacras do
México colonial. Desde as primeiras décadas do século XVI, os colonizadores
empreenderam uma verdadeira guerra das imagens, na tentativa de substituir imagens
dos povos indígenas por ícones católicos. Contudo, em meio aos avanços das práticas
evangelizadoras, os religiosos introduziram na Nova Espanha “o essencial da imagem
no Ocidente” (p.135): imagem para recordar (“memória”); imagem enquanto
representação (“espelho”); e, imagem para ser assistida, comemorada (“espetáculo”).
Se, por um lado, a divulgação das imagens dos colonizadores é apresentada
enquanto dispositivo de dominação simbólica e real, por outro, agiu como impulso ao
processo de mistura cultural entre espanhóis e indígenas. Neste sentido, o autor se
coloca numa posição intermediária; sua narrativa não privilegia nem as conquistas da
civilização no Novo Mundo, tão pouco uma história dos “vencidos”, dos povos que
teriam desaparecido. Ao invés de reforçar a relação desigual e hierárquica entre
colonizadores e colonizados, são evidenciadas, através das imagens, as diversas nuanças das relações culturais no Novo Mundo. Portanto este livro contempla os estudos culturais sobre colonização na América espanhola, que tem como referência imediata A colonização do Imaginário. Inclusive, como aponta o autor, as referências bibliográficas gerais de A guerra das imagens estão incluídas no primeiro livro dos estudos culturais sobre o México espanhol.
O contato entre os dois mundos colocou em evidência distintas percepções do
real, diferentes imaginários, segundo Gruzinski. As percepções cristãs acerca do
sobrenatural passaram a conviver com outras representações do mundo dos espíritos.
Neste processo, as imagens indígenas, em específico os objetos de culto, foram alvo da censura, da incompreensão e da intolerância religiosa.
Serge Gruzinski em uma análise acurada dá a ver o movimento pelo qual
passaram as interpretações das imagens religiosas indígenas. Da “sensibilidade
etnográfica” – presente nos relatos de Cristóvão Colombo – a “domesticação do objeto”
– iniciada com Pedro Mártir, o autor nos mostra o processo móvel de significação das
imagens.
Nos relatos de Colombo os objetos de culto indígena eram denominados
“cémies”, que, da língua Taino, significava um objeto que tinha o poder de guardar as
memórias dos antepassados. Esta forma de tratamento preserva, segundo o autor, a
individualidade, a especificidade do artefato cultural que era descrito. Por outro lado, membros da igreja ou representantes do governo espanhol, preocupados mais com o
controle político e ideológico da colônia, passaram a tratar as imagens indígenas não
mais como artefatos raros, mas enquanto objetos de culto demoníaco. Nesse sentido, a
mudança discursiva acerca das imagens é lida como vestígio das transformações sócioculturais do México espanhol. O cémi, uma primeira apropriação das imagens
indígenas, dá lugar ao “ídolo”. Nesse deslocamento de sentido, do cémi ao ídolo, as
imagens indígenas perdem seu exotismo etnográfico e passam a representar uma
ameaça aos projetos colonial espanhol e expansionista católico. Iniciou-se assim a
negação e destruição de imagens indígenas (iconoclastia), ao mesmo tempo em que se
iniciou a produção e divulgação em massa das imagens eclesiásticas.
Gruzinski ao descrever a emergência e divulgação das imagens de santos
(esculturas, afrescos e pinturas) transfere para seu texto – de maneira intencional ou fortuita – uma sensação de cansaço, em função de uma narrativa carregada de imagens religiosas. Parece que a forma do texto está em sintonia com a história narrada. A seqüência de santos barrocos, que surge no texto, nos faz pensar no caráter repetitivo da divulgação de imagens barrocas. Uma “epidemia de imagens” (p.256), segundo o autor,invadiu o cotidiano mexicano como uma tentativa de domesticação dos sentidos. Por meio de imagens procurava-se influenciar os povos da Nova Espanha a agir de determinada maneira, mas se estava longe de um controle hegemônico sobre as práticas e representações de mundo. Do cémi ao ídolo encontramos ações que buscavam mapear, nomear, significar, condenar e substituir imagens; contudo, a guerra de imagens foi feita, sobretudo, de acomodações e adaptações.
Aqui nos aproximamos das categorias centrais de análise usadas pelo autor. Para
se opor a noção de “substituição”, Gruzinski utiliza os termos “sincretismo” e
“acomodação”, a fim de se fazer notar o processo de mistura cultural que se deu entre
espanhóis e indígenas. A identidade ambígua das imagens produzidas no México
colonial, aponta para uma história viva e movediça. “Desde o início da conquista
espanhola, imagens cristãs coexistiam com ídolos entre inúmeros idólatras” (p.93). Em
meio ao processo de circulação cultural, altares eram ornamentados com cruzes, santos
e “ídolos”, e, nos cultos as divisas entre magia e religião desapareciam. “O consumo de ervas ocorre ao pé dos altares domésticos, diante dos olhos da Virgem, de Cristo e dos santos que recebem a homenagem dos participantes, mestiços índios e mulatos” (p.233). Símbolos do catolicismo eram incorporados ao universo onírico originado pelo
consumo de alucinógenos (“peyotl”). As imagens barrocas, que se destacavam pela
riqueza decorativa, entravam na composição cênica de rituais religiosos que escapavam
do controle dos evangelizadores. Neste sentido as recepções que as imagens cristãs
tiveram no México colonial, são analisadas como práticas inventivas, nas palavras do
autor: “manobras de apropriação”.
A recepção das imagens cristãs no México colonial raramente se confunde
com uma adesão apática ou uma submissão passiva, apesar da eficácia e
supremacia do dispositivo barroco, apesar dos apoios institucionais, materiais
e socioculturais que garantem maciçamente sua perenidade e ubiqüidade. As
populações reagem às imagens por incessantes manobras de apropriação.
(p.240) Ao longo dos estudos sobre o processo de ocidentalização o conceito de
mestiçagem ganhou força, até a publicação, em 1999, do livro La pensée métisse1 (O
pensamento mestiço). Para que possamos entender o conceito de mestiçagem
desenvolvido pelo historiador francês, devemos levar em conta as misturas culturais
desencadeadas pelos encontros, choques, entre as diferentes sociedades indígenas e
européias. No livro acima citado o autor diferencia hibridismo de mestiçagem, enquanto a hibridação consiste nas misturas culturais em uma mesma civilização (dentro da Europa, por exemplo), a mestiçagem se deu entre sociedades díspares, que, no caso dos estudos do México espanhol, travaram contatos a partir do século XVI. Em meio aos (des)encontros surge uma cultura mestiça, constituída em uma “zona” onde idéias e artefatos novos e inusitados são criados. “Em face do mundo indígena do interior do país, enquadrado pelos religiosos e dizimado pelas epidemias, emerge uma sociedade nova, urbana, pluriétnica e européia que – como hoje a nossa – vivem diariamente a experiência das mestiçagens”. (p.137)
Por outro lado, por meio do movimento de circulação cultural percebemos
diferentes usos ou apropriações das imagens. A idéia de circulação e apropriação – que pode ser encontrada em Il formaggio e i vermi (O queijo e os vermes) de Carlos
Ginzburg, livro citado pelo autor – procura trabalhar com o conceito de cultura sob
uma perspectiva relacional. Sob influencia dos estudos antropológicos, a cultura aparece como resultante de relações complexas entre valores e crenças, mas também entre artefatos materiais e instituições. A mestiçagem é percebida, portanto, em meio a relações culturais (religiosas, econômicas, políticas) e de poder: da submissão à arma a sedução da imagem. A noção de mestiçagem, que havia sido trabalhada no começo do século XX por intelectuais como Gilberto Freyre, Sergio Buarque de Holanda e Mário de Andrade para se pensar uma cultura brasileira, ganha força nas análises de Serge Gruzinski sobre o passado colonial da América espanhola, e, nos faz refletir mais uma vez sobre identidade e cultura, tradição e modernidade, em um mundo cada vez mais conectado e saturado de informações visuais.
A guerra real da colonização empreendida no campo simbólico conferiu um
papel de destaque às imagens. Dadas as diferenças lingüísticas entre colonizadores e
indígenas e o baixo letramento da sociedade colonial, as imagens serviam, por um lado, como dispositivo à pedagogia de cristianização, e por outro como uma possibilidade de expressão e criação de “crenças que seria difícil ou perigoso verbalizar” (p.224).
Seja como parte do aparelho de evangelização, seja enquanto expressão do
imaginário popular, as imagens barrocas são identificadas enquanto formadoras de
vínculos sociais no México espanhol. Assim Gruzinski atribui à imagem barroca uma
“função unificadora num mundo cada vez mais mestiço, que mistura as procissões e
encenações oficiais a gama inesgotável de seus divertimentos”. (p.200) A Virgem de
Guadalupe é apresentada, por sua vez, como “a mais prodigiosa das imagens”,
catalisadora dos sentimentos coletivos. A Virgem representava a mãe sedutora “de pele
morena como aquelas amas-de-leite mestiças, indígenas e mulatas que cuidavam das
crianças espanholas em toda a colônia” (p.182). O autor, seguindo os discursos dos
promotores ligados aos processos de inquisições do Santo Ofício, cita o culto a imagem da Virgem como um “nacionalismo embrionário” (p.172).
A divulgação das imagens foi ampla e massificada. Seja em locais públicos, seja
nas esferas do privado. Serge Gruzinski nos leva a conhecer os múltiplos espaços
contaminados por valores estéticos ocidentais. A noção de perspectiva (presente em
pinturas de paisagens renascentistas) passou a fazer parte, por exemplo, das técnicas de “fidelidade da narração pictórica”, que, somando-se as “cores, o nu, o drapeado, a reprodução do rosto e dos cabelos” (p.158) compunham a pintura da Nova Espanha de qualidades estéticas do Ocidente. Os pintores do vice-reinado apenas foram
reconhecidos quando passaram a representar o mundo a partir dos cânones de uma arte
ocidental que privilegiava, entre outros temas, a “docilidade” e o “conformismo”
(p.160). Assim, a suntuosidade da beleza barroca, dos altares de Virgens e santos, era divulgada como forma de combate as imagens indecentes, feias e ridículas do mundo
pré-colombiano. Por sua vez, o autor apresenta a discussão estética sobre as imagens
religiosas em meio ao contexto da contra-reforma. As imagens indígenas foram vistas a
partir de um modelo iconográfico e no momento de lutas contra as heresias.
Portanto este livro privilegia as imagens e suas representações, percebidas
enquanto possibilidade de análise do enfrentamento cultural posto pela colonização. Por sua vez o texto utiliza as questões levantadas no passado para pensar a saturação de imagens no tempo presente. “A embrulhada das referências, a confusão dos registros étnicos e culturais, a superposição da vivência e da ficção, a difusão das drogas, a multiplicação dos suportes da imagem, fazem também dos imaginários barrocos da Nova Espanha uma prefiguração dos imaginários neobarrocos ou pós-modernos que são os nossos” (p.302). A confusão contemporânea, que mistura imagens religiosas a ícones do mundo capitalista televisivo, encontra suas primeiras referências nos sincretismos culturais do século XVI. Se os andróides do filme Blade Runner eram caçados porque não eram humanos, os índios do Novo Mundo, que não tinham alma, foram dizimados, conclui Serge Gruzinski, que nos faz pensar sobre a intolerância no passado e no presente com relação à diferença.
sexta-feira, 22 de maio de 2009
Vale a pena ver!
Vejam a conferência do Gruzinski no IEAT, realizada em 2008. Até onde sei, ela foi polêmica e causou frisson! Vejam e confiram!
Aviso importante!
O texto de leitura obrigatória, já disponível no xérox, para a próxima aula é:
GRUZINSKI, Serge. A passagem do século, 1480 - 1520 : as origens da globalização. São Paulo: Companhia das Letras, 1999. 119p. (Virando séculos). Leitura obrigatória
Abraços a todos!
GRUZINSKI, Serge. A passagem do século, 1480 - 1520 : as origens da globalização. São Paulo: Companhia das Letras, 1999. 119p. (Virando séculos). Leitura obrigatória
Abraços a todos!
quinta-feira, 21 de maio de 2009
Algumas questões para Darnton.
Parece que entre os historiadores franceses há consenso de que os livros desempenharam papel fundamental na Revolução. Sem eles, a Revolução não teria existido. Penso que há dois aspectos a serem considerados: em primeiro lugar, coloca-se demasiada ênfase nos livros - e não no mundo da oralidade - para explicar o fato revolucionário. Talvez valesse a pena indagar se as pessoas não prescindiam de livros para empunhar armas contra autoridades e o próprio Estado. À imagem do revolucionário com um livro na mão, prefiro a do revolucionário com uma idéia na cabeça. Revoluções não necessitam, forçosamente, de livros, e homens rústicos e analfabetos têm, em todos os tempos, feito revoluções (não tão iluminadas quanto a Francesa) com grande sucesso. Mais decisiva que os livros é, na verdade, a cultura politica que está por trás da práxis revolucionária: cultura entendida como tradições, idéias, práticas, constituídas na experiência histórica dos homens. E esta cultura pode ser totalmente oral, partilhada por analfabetos, num mundo em que a oralidade é mais importante que a palavra escrita. O segundo ponto diz respeito à velha estória do ovo e da galinha: quem vem primeiro ? A literatura ou as idéias ? Será que a literatura, em vez de propagar e disseminar valores revolucionários, não ecoava idéias que já impregnavam o imaginário dos franceses, vindo portanto a reboque de um descontentamento generalizado ? Afinal, não me parece muito convincente a idéia de que o livro seja responsável pela criação de um mentalidade revolucionária. E análises centradas apenas na história da leitura e dos livros tendem a chegar a tal conclusão. Erro de perspectiva... Além disso, se as pessoas liam e se divertiam com as aventuras sexuais do rei é bem possível que o faziam porque o rei, para eles, já estava nu (desculpem-me o trocadilho).
Radicalizando ainda mais o meu argumento, creio ser possível até mostrar o processo inverso a que se refere Darnton: em vez da alta filosofia das Luzes chegar até o francês rústico da Provence (se é que o havia) através da baixa literatura, por que não cogitar que a alta filosofia tenha nascido em meio à plebe, num berço pobre e totalmente analfabeto, e que no espaço de algumas gerações tenha chegado aos grandes filósofos, amamentados no leite revolucionário da cultura política underground ?
E, por último, o fato de os franceses devorarem, ávidos, a pornô-literatura, não pode ser interpretado, apressadamente, como um ato de implicações políticas: talvez tal leitura fosse apenas divertida e picante.
Radicalizando ainda mais o meu argumento, creio ser possível até mostrar o processo inverso a que se refere Darnton: em vez da alta filosofia das Luzes chegar até o francês rústico da Provence (se é que o havia) através da baixa literatura, por que não cogitar que a alta filosofia tenha nascido em meio à plebe, num berço pobre e totalmente analfabeto, e que no espaço de algumas gerações tenha chegado aos grandes filósofos, amamentados no leite revolucionário da cultura política underground ?
E, por último, o fato de os franceses devorarem, ávidos, a pornô-literatura, não pode ser interpretado, apressadamente, como um ato de implicações políticas: talvez tal leitura fosse apenas divertida e picante.
A grande questão em Darnton
Para Darnton, a grande questão a que se dedica é: o que os franceses liam no século XVIII ? Resposta difícil, mas que vem sendo construída lentamente por gerações de historiadores. Talvez o primeiro passo para a dessacralização da visão tradicional segundo a qual o Iluminismo aplainara o caminho para Robespierre, tenha sido dado por Daniel Mornet, que mostrou a baixa penetração da Filosofia das Luzes entre o público leitor da França.
Penso que as indagações de Darnton giram em torno das questões correlatas: qual o caráter da cultura literária sob o Antigo Regime ? Quem produzia livros no século XVIII ? Quem os lia ? Quem livros eram esses ? E, mais importante, que conexões existiam entre o mundo dos livros e a Revolução ? Parece-me que a grande questão em Darnton é precisamente situar o papel dos livros - e sobretudo da literatura underground - na disseminação dos valores que, corroendo as entranhas do Regime, abririam o caminho para a Revolução.
Desconfiado de análises puramente quantitativas, Darnton defende a variedade do público leitor e das culturas literárias em ação na França. Em seu livro, ele investiga a trajetória dos literatos, a natureza de suas produções, a circulação dos livros por meio do contrabando, o cotidiano dos gráficos da STN, as preferências do público em geral. E formula três hipóteses interessantes: "primeira: o que os franceses liam era determinado, em parte, pela maneira através da qual seus livros eram produzidos e distribuídos. Segunda: havia basicamente dois modos de produzir e distribuir livros no século XVIII: o legal e o clandestino. Terceira: as diferenças entre esses dois modos foram cruciais para a cultura e a política do Antigo Regime".
O mundo editorial legal no século XVIII envolvia corporativismo, monopólio e privilégios, e também censura. Só se publicava os livros autorizados, isto é, o que não atentavam contra as instituições do Antigo Regime. Tratava-se de um negócio de pai para filho, pois que implicava privilégios adquiridos, protegido por corporações e pelo Estado. O submundo literário era bem diferente: a começar pela aguerrida perseguição que lhe fazia a polícia, temeroso dos efeitos das libelles sobre a opinião pública. Com sua insistência em doenças venéreas, sodomia, adultério, impotência, a propaganda das libelles, baseada na calúnia pessoal, era, segundo Darnton, mais perigosa que o Contrat Social, porque rompia o senso de decência que unia o público a seus governantes. "Seu dissimulado caráter moralizante opunha a ética do povo miúdo à de les grands: nesse sentido, apesar de suas obscenidades, os libelles eram intensamente moralistas". O resultado é a dessacralização infiltrando-se nos escaninhos bem abaixo da elite. A imagem de Luis XVI como cornudo gordo abriu caminho para a Revolução. Insidiosa e constante, a literatura underground minou e solapou os pilares do Antigo Regime. Sem ela, não teria havido a Revolução.
Penso que as indagações de Darnton giram em torno das questões correlatas: qual o caráter da cultura literária sob o Antigo Regime ? Quem produzia livros no século XVIII ? Quem os lia ? Quem livros eram esses ? E, mais importante, que conexões existiam entre o mundo dos livros e a Revolução ? Parece-me que a grande questão em Darnton é precisamente situar o papel dos livros - e sobretudo da literatura underground - na disseminação dos valores que, corroendo as entranhas do Regime, abririam o caminho para a Revolução.
Desconfiado de análises puramente quantitativas, Darnton defende a variedade do público leitor e das culturas literárias em ação na França. Em seu livro, ele investiga a trajetória dos literatos, a natureza de suas produções, a circulação dos livros por meio do contrabando, o cotidiano dos gráficos da STN, as preferências do público em geral. E formula três hipóteses interessantes: "primeira: o que os franceses liam era determinado, em parte, pela maneira através da qual seus livros eram produzidos e distribuídos. Segunda: havia basicamente dois modos de produzir e distribuir livros no século XVIII: o legal e o clandestino. Terceira: as diferenças entre esses dois modos foram cruciais para a cultura e a política do Antigo Regime".
O mundo editorial legal no século XVIII envolvia corporativismo, monopólio e privilégios, e também censura. Só se publicava os livros autorizados, isto é, o que não atentavam contra as instituições do Antigo Regime. Tratava-se de um negócio de pai para filho, pois que implicava privilégios adquiridos, protegido por corporações e pelo Estado. O submundo literário era bem diferente: a começar pela aguerrida perseguição que lhe fazia a polícia, temeroso dos efeitos das libelles sobre a opinião pública. Com sua insistência em doenças venéreas, sodomia, adultério, impotência, a propaganda das libelles, baseada na calúnia pessoal, era, segundo Darnton, mais perigosa que o Contrat Social, porque rompia o senso de decência que unia o público a seus governantes. "Seu dissimulado caráter moralizante opunha a ética do povo miúdo à de les grands: nesse sentido, apesar de suas obscenidades, os libelles eram intensamente moralistas". O resultado é a dessacralização infiltrando-se nos escaninhos bem abaixo da elite. A imagem de Luis XVI como cornudo gordo abriu caminho para a Revolução. Insidiosa e constante, a literatura underground minou e solapou os pilares do Antigo Regime. Sem ela, não teria havido a Revolução.
Darnton e a boêmia literária
No livro Boemia literária e a revolução, Darnton investiga o submundo literário francês às vésperas da Revolução Francesa, buscando analisar a trajetória dos homens que, com seus escritos radicais, agitavam a cena política da época, levando até as classes populares as idéias das Luzes. Descobrimos então que os libelles, com sua pornografia aviltante, apesar de desprovidos de uma ideologia coerente, comunicava um ponto de vista revolucionário, posto que mostravam a podridão social que consumia o Antigo Regime francês. Menos interessados no Contrato Social de Rousseau, o público devorava ávido as narrativas sobre a perversidade da nobreza, com seus delitos sexuais mais ignomináveis. A porno-política que infestava esta sub-literatura roía as entranhas do regime, elaborando mitos, desfazendo outros, constituindo uma opinião pública revolucionária. É bem verdae que o público francês do século XVIII não existia de forma organizada, dado que estava excluído de qualquer forma de participação política direta. Mas é esta exclusão que tornava este público permeável às estórias escabrosas que eram narradas por esta variedade impressionante de literatos, dominados pelo ódio ao Antigo Regime. É precisamente o ímpeto emocional deles que tornava sua produção revolucionária, por mais que lhes faltasse um programa político coerente. Iconoclastia radical, direcionada contra todos os valores do Antigo Regime, que tendia a dessacralizá-los, corroendo as entranhas do sistema político. A Revolução surge assim não nos tratados densos e áridos dos filósofos das Luzes, mas na sub-literatura de gosto duvidoso, por vezes escatológica e abertamente pornográfica, que se regozijava nas descrições sexuais da vida dos poderosos da época. Serviu ela como ponte entre os grandes filósofos e o público espalhado pelas pequenas cidades e pelo campo, disseminando entre eles os valores que, mais tarde, desencadeariamm a Revolução. Gente miserável, infeliz e desbocada que fazia da baixa literatura o seu ganha-pão, em tudo contrária à imagem do filósofo da academia, sisudo e apartado do povo. A disseminação deste literatura de underground só foi possível graças ao robusto comércio clandestino de livros sob o Antigo Regime, que permitia a circulação deles de forma sub-reptícia, por mãos de personagens sombrias, que arrastavam, pelas fronteiras francesas, pesados engradados de livros proibidos, em sua maioria publicados pela Société Typographique de Neuchâtel (STN), que buscava suprir os franceses de livros que não podiam ser produzidos legalmente na França. Obras obscenas ou pirateadas que inundavam o universo dos leitores franceses, divulgando um vasto repertório de assuntos, em edições frequentemente custeadas pelo próprio autor, e depois adquiridas, por meio do contrabando, pelos livreiros das pequenas cidades. Os leitores não queriam obras abstratas nem teóricas como os escritos de Montesquieu, Voltaire, Diderot e Rousseau, preferindo antes os popularizadores e vulgarizadores do Iluminismo, além das crônicas escandalosas nascidas da boataria em torno do mundo da política. Sucesso de público, os libelles eram virulentos ataques aos indivíduos que ocupavam as posições de prestígio e poder, como ministros, cortesãos, membros da família real. Luís XV reinava soberano nestes libelles, com sua escabrosa e arrepiante vida sexual, que teria custado a França mais de um bilhão de libras. O que estes literatos da sarjeta queriam - e o conseguiram - era mostrar que o regime era podre e faziam uma propaganda radical onde os assuntos políticos eram sobrepujados pelo crime e pelo sexo. O mote desta literatura girava em torno da idéia de que a monarquia havia degenerado em despotismo.
quarta-feira, 20 de maio de 2009
segunda-feira, 18 de maio de 2009
Aviso importante!
Caros alunos
Houve uma alteração na leitura para a próxima aula. O livro é:
DARNTON, Robert. Boemia literaria e revolução: o submundo das letras no antigo regime.
Quem já leu o texto indicado anteriormente, não se preocupe. O novo livro já está no xérox.
Houve uma alteração na leitura para a próxima aula. O livro é:
DARNTON, Robert. Boemia literaria e revolução: o submundo das letras no antigo regime.
Quem já leu o texto indicado anteriormente, não se preocupe. O novo livro já está no xérox.
Dica imperdível!
PROJETO BRASILIANA - ANO FRANÇA / BRASIL
Conferências:
Dia 18/05/2009 - Jean_Yves Mollier
Centre d'Histoire Culturel des Societés Contemporaines - Université de Versailles Saint-Quentin
"A História do Livro e da Edição, um observatório privilegiado do Universo mental dos homens do século XIII ao XX
Local: Sala 2094 - FAFICH
Horário: 14:00 horas
Dia 19/05/2009 - Diana Cooper-Richet
Centre d'Histoire Culturel des Societés Contemporaines - Université de Versailles Saint-Quentin
"Paris, Capital Editorial do Mundo Lusófono na primeira metade do século XIX"
Local: Sala 2094 - FAFICH
Horário: 14:00 horas
Encontro com pesquisadores
Dia: 19/05/2009
Local: Sala do Projeto Brasiliana nº1059 - térreo
Horário: 10:00 horas
Conferências:
Dia 18/05/2009 - Jean_Yves Mollier
Centre d'Histoire Culturel des Societés Contemporaines - Université de Versailles Saint-Quentin
"A História do Livro e da Edição, um observatório privilegiado do Universo mental dos homens do século XIII ao XX
Local: Sala 2094 - FAFICH
Horário: 14:00 horas
Dia 19/05/2009 - Diana Cooper-Richet
Centre d'Histoire Culturel des Societés Contemporaines - Université de Versailles Saint-Quentin
"Paris, Capital Editorial do Mundo Lusófono na primeira metade do século XIX"
Local: Sala 2094 - FAFICH
Horário: 14:00 horas
Encontro com pesquisadores
Dia: 19/05/2009
Local: Sala do Projeto Brasiliana nº1059 - térreo
Horário: 10:00 horas
quinta-feira, 14 de maio de 2009
Conceito de popular em Chartier
"O 'popular' não está contido em conjuntos de elementos que bastaria identificar,repertoriar e descrever. Ele qualifica, antes de mais nada, um tipo de relação, um modo de utilizar objetos ou normas que circulam na sociedade, mas que são recebidos, compreendidos e manipulados de diversas maneiras. Tal constatação desloca necessariamente o trabalho do historiador, já que o obriga a caracterizar, não conjuntos culturais dados como "populares" em si, mas as modalidades diferenciadas pelas quais eles são apropriados."
Conceito de apropriação em Chartier
"É por isso que esta noção parece central para toda história cultural — com a condição,talvez, de ser reformulada. Esta reformulação, que enfatiza a pluralidade dos uso e dos entendimentos, se afasta, de saída, do sentido dado ao conceito por Michel Foucault quando coloca "a apropriação social dos discursos" como um dos mais importantes procedimentos por meio dos quais os discursos são dominados e confiscados pelas instituições ou pelos grupos
que se arrogam o direito de exercer um controle exclusivo sobre eles. Ele se afasta, também, do sentido que a hermenêutica dá à apropriação, quando a representa como o momento em que a "aplicação" de uma configuração narrativa particular à situação do sujeito transforma, pela interpretação, a compreensão que este tem de si mesmo e do mundo, transformando assim, também, sua experiência fenomenológica tida como universal. A apropriação tal como a entendemos visa a elaboração de uma história social dos usos e das interpretações, relacionados às suas determinações fundamentais e inscritos nas práticas específicas que os controem. Prestar, assim, atenção às condições e aos processos que muito concretamente são portadores das operações de produção de sentido, significa reconhecer, em oposição à antiga história intelectual, que nem as idéias nem as interpretações são desencarnadas, e que, contrariamente ao que colocam os pensamentos universalizantes, as categorias dadas como invariantes, sejam elas fenomenológicas ou filosóficas, devem ser pensadas em função da descontinuidade das trajetórias históricas. Se permite romper com uma definição ilusória da cultura popular, a noção de apropriação, utilizada como instrumento de conhecimento, pode também reintroduzir uma nova ilusão: a que leva a considerar o leque das práticas culturais como um sistema neutro de
diferenças, como um conjunto de práticas diversas, porém equivalentes. Adotar tal
perspectiva significaria esquecer que tanto os bens simbólicos como as práticas culturais continuam sendo objeto de lutas sociais onde estão em jogo sua classificação, sua hierarquização, sua consagração (ou, ao contrário, sua desqualificação). Compreender "cultura popular" significa, então, situar neste espaço de enfrentamentos as relações que unem dois conjuntos de dispositivos: de um lado, os mecanismos da dominação simbólica, cujo objetivo é tornar aceitáveis, pelos próprios dominados, as representações e os modos de consumo que, precisamente, qualificam (ou antes desqualificam) sua cultura como inferior e ilegítima, e, de outro lado, as lógicas específicas em funcionamento nos usos e nos modos de apropriação do que é imposto."
que se arrogam o direito de exercer um controle exclusivo sobre eles. Ele se afasta, também, do sentido que a hermenêutica dá à apropriação, quando a representa como o momento em que a "aplicação" de uma configuração narrativa particular à situação do sujeito transforma, pela interpretação, a compreensão que este tem de si mesmo e do mundo, transformando assim, também, sua experiência fenomenológica tida como universal. A apropriação tal como a entendemos visa a elaboração de uma história social dos usos e das interpretações, relacionados às suas determinações fundamentais e inscritos nas práticas específicas que os controem. Prestar, assim, atenção às condições e aos processos que muito concretamente são portadores das operações de produção de sentido, significa reconhecer, em oposição à antiga história intelectual, que nem as idéias nem as interpretações são desencarnadas, e que, contrariamente ao que colocam os pensamentos universalizantes, as categorias dadas como invariantes, sejam elas fenomenológicas ou filosóficas, devem ser pensadas em função da descontinuidade das trajetórias históricas. Se permite romper com uma definição ilusória da cultura popular, a noção de apropriação, utilizada como instrumento de conhecimento, pode também reintroduzir uma nova ilusão: a que leva a considerar o leque das práticas culturais como um sistema neutro de
diferenças, como um conjunto de práticas diversas, porém equivalentes. Adotar tal
perspectiva significaria esquecer que tanto os bens simbólicos como as práticas culturais continuam sendo objeto de lutas sociais onde estão em jogo sua classificação, sua hierarquização, sua consagração (ou, ao contrário, sua desqualificação). Compreender "cultura popular" significa, então, situar neste espaço de enfrentamentos as relações que unem dois conjuntos de dispositivos: de um lado, os mecanismos da dominação simbólica, cujo objetivo é tornar aceitáveis, pelos próprios dominados, as representações e os modos de consumo que, precisamente, qualificam (ou antes desqualificam) sua cultura como inferior e ilegítima, e, de outro lado, as lógicas específicas em funcionamento nos usos e nos modos de apropriação do que é imposto."
Cultura Popular, segundo Chartier. Ver Link: http://www.cpdoc.fgv.br/revista/arq/172.pdf
Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 8, n . 16, 1995, p.179-192.
"CULTURA POPULAR":
revisitando um conceito historiográfico*
Roger Chartier
Entrevista com Chartier
ENTREVISTA
http://www.editoraunesp.com.br/template/noticias_551.htm acessado em 26/08/2005
"Leitor também é autor"
Para o historiador do livro, a escrita ficou ainda mais importante no meio eletrônico
Entrevista com Roger Chartierpor Luciano Trigo
Historiador do livro e da leitura, Roger Chartier, em sua mais recente vinda ao Brasil, lançou seu livro "Leituras e Leitores na França do Antigo Regime". Na ocasião - fins de junho - voltou a ressaltar que o livro deverá sobreviver ao texto eletrônico, sobretudo no caso do romance folheado no ônibus, no metrô ou no avião. Mesmo portátil, um computador é um objeto bem menos amigável. No tocante a jornais e revistas, tanto o papel como a tela podem receber leituras complementares: uma, funcional, e a outra, mais profunda. Se a leitura está mudando, o leitor também passa por uma revolução: ao interferir no texto eletrônico, cortando-o ou ampliando-o, também é autor.
O GLOBO: O senhor passou da História do livro à História da leitura, do objeto ao leitor. O que determinou essa mudança de curso? ROGER CHARTIER: Durante muito tempo, os historiadores franceses deram respostas ruins a perguntas boas. Foi assim que, para estudar a leitura num tempo e num espaço determinados, tentaram reconstruir, por um lado, as conjunturas da produção do livro, e, por outro, a composição das bibliotecas particulares. Ou seja, era o primado das fontes administrativas e da abordagem estatística. Os resultados foram, às vezes, espetaculares, mas inúteis para analisar as letras, entendidas como a significação dada pelos leitores aos textos que eles recebem ou dos quais se apropriam, e que não são somente livros. Era preciso recorrer a outras fontes, que permitissem reconstituir as convenções e os hábitos de leitura das comunidades e, também, as leituras singulares de indivíduos particulares.
GLOBO: Existe uma crise da leitura? A morte do leitor e o desaparecimento da leitura serão conseqüências do triunfo da imagem?
CHARTIER: Não creio que se possa falar de uma crise da leitura como resultado da comunicação eletrônica. As telas do passado eram telas de imagens, como no cinema e na televisão, e McLuhan as contrapunha à Galáxia de Gutenberg, à civilização escrita. Mas as novas telas do presente são telas de texto, por assim dizer. Elas transmitem imagens, acompanhadas ou não de som, mas apresentam sobretudo um predomínio da escrita, em todas as suas funções: epistolar, documentária, didática, literária etc. O verdadeiro problema não é portanto o da suposta desaparição da escrita, mas os efeitos de um novo modo de escrever, na tela do computador, e de uma nova maneira, de ler, fragmentada, descontínua, hipertextual, sobre as categorias e práticas que, até aqui, comandavam a nossa relação com a escrita.
GLOBO: Nesse novo contexto, muda também o estatuto do autor? Como isso afeta a leitura?
CHARTIER: É certo que a comunicação eletrônica dá aos textos uma maleabilidade e uma abertura desconhecidas anteriormente. Ao decupar, transformar, deslocar o texto, o leitor se torna ele próprio autor, ou antes um dos interventores dentro de um processo ininterrupto e coletivo de uma escritura polifônica. Alguns autores, como Michel Foucault, sonharam com as possibilidades abertas por uma escritura sem autor, onde cada um participa anonimamente. O texto eletrônico dá uma realidade possível a esse sonho. Mas, evidentemente, o apagamento do autor confunde as categorias jurídicas, como propriedade literária, direitos autorais e copy-right, e estéticas, como a idéia de obra como criação pessoal, singular e original, que governam a produção escrita. Daí surgirem numerosos processos que visam a restaurar a proteção dos direitos de propriedade sobre a escritura, e também sobre as imagens e os sons, no mundo eletrônico. Daí, também, a procura por dispositivos tecnológicos que impedem a cópia ou a alteração dos textos, salvaguardando assim os direitos dos autores e editores. As edições eletrôncias de revistas científicas que impõem um acesso pago e controlado são um caso sintomático.
GLOBO: Está em curso uma revolução? O livro eletrônico vai substituir o livro convencional?
CHARTIER: Alguém já disse, em tom de brincadeira, que se o livro impresso tivesse sido inventado depois do computador, seria considerado um grande progresso. É certo que, para as obras cuja própria natureza implica uma leitura fragmentada e descontínua, como as enciclopédias e dicionários, a textualidade numérica oferece vantagens consideráveis: rapidez na pesquisa, multiplicação dos laços hipertextuais, atualização dos dados. Daí a escolha feita por muitas enciclopédias, como a Encyclopedia Britannica e Encyclopedia Universalis, a favor da edição eletrônica. Mas para outros gêneros, como romances, ensaios e livros científicos, que implicam uma percepção da obra na sua totalidade, identidade e coerência, não me parece que o formato eletrônico satisfaça o leitor. Pode acontecer de alguém só ler algumas páginas de um livro impresso, mas a própria materialidade do objeto impõe ao leitor a presença do texto integral e a identificação da obra como tal. Decorrem daí, pelo menos na França, as dificuldades e os fracassos dos editores que se aventuraram nesse mercado do livro eletrônico. O caso dos jornais e revistas é mais complexo, porque a sua dupla leitura, na página e na tela do computador, não segue uma mesma lógica. A leitura do formato eletrônico é temática, hierarquizada, e se lê um artigo sem necessariamente saber de que tratam os outros artigos publicados no mesmo número. A leitura do objeto impresso é bem diferente. Ela constrói o sentido de cada artigo e do conjunto do jornal a partir da presença de diferentes elementos textuais, como artigos, editoriais e publicidade, num mesmo objeto tipográfico. Daí a dupla publicação do "mesmo" jornal, para responder a necessidades diferentes.
GLOBO: Quais seriam as diferenças entre a leitura do texto na tela e no papel e o que elas podem implicar?
CHARTIER: Deve-se evitar o discurso de nostalgia criado pela suposta perda de objetos familiares, mas às vezes é difícil evitar esse risco. O importante é reconhecer em quê duas formas tão diferentes de inscrição, comunicação e recepção dos textos modificam as nossas práticas de leitor e nossa maneira de construir a significação dos textos que lemos. O exemplo dos jornais permite compreender bem as duas lógicas, a analítica e a espacial, que governam a apropriação dos "mesmos" artigos. O contraste entre o livro que carregamos conosco, familiar, que pode ser lido na rua, no ônibus ou no metrô, e o computador, mesmo portátil, indica duas relações corporais muito diferentes com o texto. De um lado, a proximidade do objeto, folheado, anotado, disponível. De outro, a mediação do teclado, o peso do aparelho, o desconforto da leitura. Para um romance ou livro de História, o e-book não é o substituto do livro de bolso. GLOBO: Crê que o destino do livro será inseparável do destino do hipertexto? Fale mais sobre o impacto do texto eletrônico na concepção e na transmissão da informação. CHARTIER: Sua questão conduz a um equilíbrio feliz do meu julgamento. De fato os recursos do hipertexto permitem pensar em novos modos de construção de argumentações e de conhecimentos, ao mesmo tempo que proporcionam aos leitores possibilidades inéditas de controle. De um lado, o autor pode construir suas demonstrações segundo uma lógica que não é mais necessariamente linear, podendo introduzir, a qualquer momento, referências e documentos. De outro, o leitor não é obrigado a dar crédito ao autor, já que ele pode conferir os documentos que foram objetos de trabalho de pesquisa e refazer todo o percurso da pesquisa. Tome-se como exemplo um livro de História. No livro impresso o leitor tem que confiar no historiador, já que é impossível consultar os documentos e textos analisados. No hipertexto, ele pode ler o que o historiador leu e assim fazer seu próprio julgamento sobre as conclusões que ele tirou. Ocorre uma transformação profunda nos critérios da prova. Mas há um risco nesse novo mundo textual, que é o de confundir conhecimento com informação. A textualidade eletrônica, livre, gratuita, na qual cada um pode abrir um site, multiplica as opiniões, os erros e as falsificações. É preciso, portanto, refletir sobre meios que possam indicar ao leitor que autoridade que pode atribuir com razoável segurança a este ou aquele website, banco de dados ou revista eletrônica. Se não, há um risco grande de se considerar verdadeiro tudo o que for acessível na rede, já que tudo aparece de uma forma parecida e sobre um mesmo suporte, a tela do computador.
GLOBO: De que maneira a Internet pode mudar o conceito de propriedade intelectual? CHARTIER: Os textos instáveis, maleáveis e polifônicos da textualidade eletrônica lançam um grande desafio às categorias jurídicas que definem a propriedade literária, que apareceram no século XVIII. A única forma de tornar as coisas mais claras será uma distinção mais nítida entre a comunicação eletrônica livre e gratuita, à margem do princípio dos direitos autorais, e a publicação eletrônica, que pressupõe, como todas as outras formas de publicação, a proteção dos direitos do autor e do editor. E também a fixação da identidade do texto, para impedir apropriações indevidas.
GLOBO: Mas o livro continuará existindo?
CHARTIER: Os historiadores já se enganaram tantas vezes ao profetizar o futuro que eu prefiro ser prudente. Suponho que o livro impresso do futuro tentará assimilar algumas inovações propostas pelo texto eletrônico e permitirá, à sua maneira, uma leitura hipertextual e multimídia. Até aqui foi o mundo eletrônico que se esforçou para não confundir demais o leitor, adaptando ao seu formato o léxico da impressão. Mas o inverso pode acontecer no futuro.
GLOBO: O que o senhor pensa da definição do jornalista como um historiador do presente? CHARTIER: Alguns historiadores talvez tenham sonhado em ser os jornalistas do passado. Buscaram uma forma de escrever menos acadêmica e mais suscetível de seduzir um grande número de leitores. Existe, porém, uma distância muito grande em relação aos fatos, aos critérios de prova e de validação das informações, mesmo que tanto o jornalista quanto o historiador trabalhem com a pesquisa, o rigor e a objetividade. A diferença entre os dois reside fundamentalmente no fato de que a pesquisa histórica exige um longo tempo, enquanto o jornalismo implica urgência na apuração. GLOBO: A revolução eletrônica pode aprofundar desigualdades e provocar um novo "iletrismo"?
CHARTIER: Esse risco é imenso. Em 2001, cerca de 50% dos endereços eletrônicos eram dos países anglófonos. Contrariamente ao que sugerem os discursos técnicos e utópicos, o mundo eletrônico não representa, em si mesmo, uma promessa de universalidade, pois o seu acesso pressupõe um custo econômico e uma competência cultural. Daí o risco que você assinala, de um novo iletrismo, caracterizado não pela ignorância da leitura e da escrita, mas pela exclusão de uma nova modalidade da comunicação. É preciso lembrar essa ameaça para que não se confunda o virtual com o real. Virtualmente, a rede pode concretizar o sonho do Iluminismo, segundo o qual cada um pode e deve ser ao mesmo tempo leitor e autor, contribuindo com seu julgamento para a constituição de um espaço público e crítico. Mas este sonho está longe de ser realizado. Na escala do planeta ou de cada país, o uso diferenciado do meio eletrônico reforça as desigualdades. O governo precisa inverter essa tendência, por meio das escolas e bibliotecas, para que todos sejam cidadãos do novo mundo eletrônico.
GLOBO: O computador e suas imagens podem afetar negativamente o ato da leitura?
CHARTIER: As imagens podem matar o imaginário, que pressupõe que o leitor possa formar a seu critério as representações sugeridas pelo texto. Nesse sentido, o excesso de imagens do nosso tempo não leva necessariamente a um exercício mais denso ou mais intenso da imaginação. É claro que um novo tipo de relação pode ser instaurado entre textos, imagens fixas ou móveis e músicas, graças à tecnologia multimídia. E a criação estética pode ser enriquecida por novas energias. "Dom Quixote", publicado em 1605, mesmo sem comportar nenhuma ilustração ou imagem, continua a fazer os leitores sonharem, percorrendo caminhos poeirentos de la Mancha com dois companheiros que só têm uma existência de papel.
Luciano Trigo é Coordenador Geral do Livro e da Leitura da Biblioteca Nacional.Publicado no jornal "O GLOBO", no dia 10/7/2004 - Seção Prosa & Verso - página 6
http://www.editoraunesp.com.br/template/noticias_551.htm acessado em 26/08/2005
"Leitor também é autor"
Para o historiador do livro, a escrita ficou ainda mais importante no meio eletrônico
Entrevista com Roger Chartierpor Luciano Trigo
Historiador do livro e da leitura, Roger Chartier, em sua mais recente vinda ao Brasil, lançou seu livro "Leituras e Leitores na França do Antigo Regime". Na ocasião - fins de junho - voltou a ressaltar que o livro deverá sobreviver ao texto eletrônico, sobretudo no caso do romance folheado no ônibus, no metrô ou no avião. Mesmo portátil, um computador é um objeto bem menos amigável. No tocante a jornais e revistas, tanto o papel como a tela podem receber leituras complementares: uma, funcional, e a outra, mais profunda. Se a leitura está mudando, o leitor também passa por uma revolução: ao interferir no texto eletrônico, cortando-o ou ampliando-o, também é autor.
O GLOBO: O senhor passou da História do livro à História da leitura, do objeto ao leitor. O que determinou essa mudança de curso? ROGER CHARTIER: Durante muito tempo, os historiadores franceses deram respostas ruins a perguntas boas. Foi assim que, para estudar a leitura num tempo e num espaço determinados, tentaram reconstruir, por um lado, as conjunturas da produção do livro, e, por outro, a composição das bibliotecas particulares. Ou seja, era o primado das fontes administrativas e da abordagem estatística. Os resultados foram, às vezes, espetaculares, mas inúteis para analisar as letras, entendidas como a significação dada pelos leitores aos textos que eles recebem ou dos quais se apropriam, e que não são somente livros. Era preciso recorrer a outras fontes, que permitissem reconstituir as convenções e os hábitos de leitura das comunidades e, também, as leituras singulares de indivíduos particulares.
GLOBO: Existe uma crise da leitura? A morte do leitor e o desaparecimento da leitura serão conseqüências do triunfo da imagem?
CHARTIER: Não creio que se possa falar de uma crise da leitura como resultado da comunicação eletrônica. As telas do passado eram telas de imagens, como no cinema e na televisão, e McLuhan as contrapunha à Galáxia de Gutenberg, à civilização escrita. Mas as novas telas do presente são telas de texto, por assim dizer. Elas transmitem imagens, acompanhadas ou não de som, mas apresentam sobretudo um predomínio da escrita, em todas as suas funções: epistolar, documentária, didática, literária etc. O verdadeiro problema não é portanto o da suposta desaparição da escrita, mas os efeitos de um novo modo de escrever, na tela do computador, e de uma nova maneira, de ler, fragmentada, descontínua, hipertextual, sobre as categorias e práticas que, até aqui, comandavam a nossa relação com a escrita.
GLOBO: Nesse novo contexto, muda também o estatuto do autor? Como isso afeta a leitura?
CHARTIER: É certo que a comunicação eletrônica dá aos textos uma maleabilidade e uma abertura desconhecidas anteriormente. Ao decupar, transformar, deslocar o texto, o leitor se torna ele próprio autor, ou antes um dos interventores dentro de um processo ininterrupto e coletivo de uma escritura polifônica. Alguns autores, como Michel Foucault, sonharam com as possibilidades abertas por uma escritura sem autor, onde cada um participa anonimamente. O texto eletrônico dá uma realidade possível a esse sonho. Mas, evidentemente, o apagamento do autor confunde as categorias jurídicas, como propriedade literária, direitos autorais e copy-right, e estéticas, como a idéia de obra como criação pessoal, singular e original, que governam a produção escrita. Daí surgirem numerosos processos que visam a restaurar a proteção dos direitos de propriedade sobre a escritura, e também sobre as imagens e os sons, no mundo eletrônico. Daí, também, a procura por dispositivos tecnológicos que impedem a cópia ou a alteração dos textos, salvaguardando assim os direitos dos autores e editores. As edições eletrôncias de revistas científicas que impõem um acesso pago e controlado são um caso sintomático.
GLOBO: Está em curso uma revolução? O livro eletrônico vai substituir o livro convencional?
CHARTIER: Alguém já disse, em tom de brincadeira, que se o livro impresso tivesse sido inventado depois do computador, seria considerado um grande progresso. É certo que, para as obras cuja própria natureza implica uma leitura fragmentada e descontínua, como as enciclopédias e dicionários, a textualidade numérica oferece vantagens consideráveis: rapidez na pesquisa, multiplicação dos laços hipertextuais, atualização dos dados. Daí a escolha feita por muitas enciclopédias, como a Encyclopedia Britannica e Encyclopedia Universalis, a favor da edição eletrônica. Mas para outros gêneros, como romances, ensaios e livros científicos, que implicam uma percepção da obra na sua totalidade, identidade e coerência, não me parece que o formato eletrônico satisfaça o leitor. Pode acontecer de alguém só ler algumas páginas de um livro impresso, mas a própria materialidade do objeto impõe ao leitor a presença do texto integral e a identificação da obra como tal. Decorrem daí, pelo menos na França, as dificuldades e os fracassos dos editores que se aventuraram nesse mercado do livro eletrônico. O caso dos jornais e revistas é mais complexo, porque a sua dupla leitura, na página e na tela do computador, não segue uma mesma lógica. A leitura do formato eletrônico é temática, hierarquizada, e se lê um artigo sem necessariamente saber de que tratam os outros artigos publicados no mesmo número. A leitura do objeto impresso é bem diferente. Ela constrói o sentido de cada artigo e do conjunto do jornal a partir da presença de diferentes elementos textuais, como artigos, editoriais e publicidade, num mesmo objeto tipográfico. Daí a dupla publicação do "mesmo" jornal, para responder a necessidades diferentes.
GLOBO: Quais seriam as diferenças entre a leitura do texto na tela e no papel e o que elas podem implicar?
CHARTIER: Deve-se evitar o discurso de nostalgia criado pela suposta perda de objetos familiares, mas às vezes é difícil evitar esse risco. O importante é reconhecer em quê duas formas tão diferentes de inscrição, comunicação e recepção dos textos modificam as nossas práticas de leitor e nossa maneira de construir a significação dos textos que lemos. O exemplo dos jornais permite compreender bem as duas lógicas, a analítica e a espacial, que governam a apropriação dos "mesmos" artigos. O contraste entre o livro que carregamos conosco, familiar, que pode ser lido na rua, no ônibus ou no metrô, e o computador, mesmo portátil, indica duas relações corporais muito diferentes com o texto. De um lado, a proximidade do objeto, folheado, anotado, disponível. De outro, a mediação do teclado, o peso do aparelho, o desconforto da leitura. Para um romance ou livro de História, o e-book não é o substituto do livro de bolso. GLOBO: Crê que o destino do livro será inseparável do destino do hipertexto? Fale mais sobre o impacto do texto eletrônico na concepção e na transmissão da informação. CHARTIER: Sua questão conduz a um equilíbrio feliz do meu julgamento. De fato os recursos do hipertexto permitem pensar em novos modos de construção de argumentações e de conhecimentos, ao mesmo tempo que proporcionam aos leitores possibilidades inéditas de controle. De um lado, o autor pode construir suas demonstrações segundo uma lógica que não é mais necessariamente linear, podendo introduzir, a qualquer momento, referências e documentos. De outro, o leitor não é obrigado a dar crédito ao autor, já que ele pode conferir os documentos que foram objetos de trabalho de pesquisa e refazer todo o percurso da pesquisa. Tome-se como exemplo um livro de História. No livro impresso o leitor tem que confiar no historiador, já que é impossível consultar os documentos e textos analisados. No hipertexto, ele pode ler o que o historiador leu e assim fazer seu próprio julgamento sobre as conclusões que ele tirou. Ocorre uma transformação profunda nos critérios da prova. Mas há um risco nesse novo mundo textual, que é o de confundir conhecimento com informação. A textualidade eletrônica, livre, gratuita, na qual cada um pode abrir um site, multiplica as opiniões, os erros e as falsificações. É preciso, portanto, refletir sobre meios que possam indicar ao leitor que autoridade que pode atribuir com razoável segurança a este ou aquele website, banco de dados ou revista eletrônica. Se não, há um risco grande de se considerar verdadeiro tudo o que for acessível na rede, já que tudo aparece de uma forma parecida e sobre um mesmo suporte, a tela do computador.
GLOBO: De que maneira a Internet pode mudar o conceito de propriedade intelectual? CHARTIER: Os textos instáveis, maleáveis e polifônicos da textualidade eletrônica lançam um grande desafio às categorias jurídicas que definem a propriedade literária, que apareceram no século XVIII. A única forma de tornar as coisas mais claras será uma distinção mais nítida entre a comunicação eletrônica livre e gratuita, à margem do princípio dos direitos autorais, e a publicação eletrônica, que pressupõe, como todas as outras formas de publicação, a proteção dos direitos do autor e do editor. E também a fixação da identidade do texto, para impedir apropriações indevidas.
GLOBO: Mas o livro continuará existindo?
CHARTIER: Os historiadores já se enganaram tantas vezes ao profetizar o futuro que eu prefiro ser prudente. Suponho que o livro impresso do futuro tentará assimilar algumas inovações propostas pelo texto eletrônico e permitirá, à sua maneira, uma leitura hipertextual e multimídia. Até aqui foi o mundo eletrônico que se esforçou para não confundir demais o leitor, adaptando ao seu formato o léxico da impressão. Mas o inverso pode acontecer no futuro.
GLOBO: O que o senhor pensa da definição do jornalista como um historiador do presente? CHARTIER: Alguns historiadores talvez tenham sonhado em ser os jornalistas do passado. Buscaram uma forma de escrever menos acadêmica e mais suscetível de seduzir um grande número de leitores. Existe, porém, uma distância muito grande em relação aos fatos, aos critérios de prova e de validação das informações, mesmo que tanto o jornalista quanto o historiador trabalhem com a pesquisa, o rigor e a objetividade. A diferença entre os dois reside fundamentalmente no fato de que a pesquisa histórica exige um longo tempo, enquanto o jornalismo implica urgência na apuração. GLOBO: A revolução eletrônica pode aprofundar desigualdades e provocar um novo "iletrismo"?
CHARTIER: Esse risco é imenso. Em 2001, cerca de 50% dos endereços eletrônicos eram dos países anglófonos. Contrariamente ao que sugerem os discursos técnicos e utópicos, o mundo eletrônico não representa, em si mesmo, uma promessa de universalidade, pois o seu acesso pressupõe um custo econômico e uma competência cultural. Daí o risco que você assinala, de um novo iletrismo, caracterizado não pela ignorância da leitura e da escrita, mas pela exclusão de uma nova modalidade da comunicação. É preciso lembrar essa ameaça para que não se confunda o virtual com o real. Virtualmente, a rede pode concretizar o sonho do Iluminismo, segundo o qual cada um pode e deve ser ao mesmo tempo leitor e autor, contribuindo com seu julgamento para a constituição de um espaço público e crítico. Mas este sonho está longe de ser realizado. Na escala do planeta ou de cada país, o uso diferenciado do meio eletrônico reforça as desigualdades. O governo precisa inverter essa tendência, por meio das escolas e bibliotecas, para que todos sejam cidadãos do novo mundo eletrônico.
GLOBO: O computador e suas imagens podem afetar negativamente o ato da leitura?
CHARTIER: As imagens podem matar o imaginário, que pressupõe que o leitor possa formar a seu critério as representações sugeridas pelo texto. Nesse sentido, o excesso de imagens do nosso tempo não leva necessariamente a um exercício mais denso ou mais intenso da imaginação. É claro que um novo tipo de relação pode ser instaurado entre textos, imagens fixas ou móveis e músicas, graças à tecnologia multimídia. E a criação estética pode ser enriquecida por novas energias. "Dom Quixote", publicado em 1605, mesmo sem comportar nenhuma ilustração ou imagem, continua a fazer os leitores sonharem, percorrendo caminhos poeirentos de la Mancha com dois companheiros que só têm uma existência de papel.
Luciano Trigo é Coordenador Geral do Livro e da Leitura da Biblioteca Nacional.Publicado no jornal "O GLOBO", no dia 10/7/2004 - Seção Prosa & Verso - página 6
Texto e real em Chartier
As premissas teóricas que norteam o trabalho de Chartier ancoram-se na idéia de que o texto não mantém uma relação transparente com a realidade, constituindo-se antes como um sistema construído consoante categorias, esquemas de percepção e regras de funcionamento que estão na origem de suas condições de produção. Assim, todo texto é atravessado por determinações e configurações intelecuais que são próprias de sua época.
Quanto à realidade, ela não é o real, mas real é a maneira como ela é construída pelos textos, ou seja, o mundo como construção e representação. Segundo Chartier, "o real assume assim um novo sentido: aquilo que é real, efetivamente, não é a realidade visada pelo texto, mas a própria maneira como ele a cria, na historicidade de sua produção e na intencionalidade de sua escrita".
Quanto à realidade, ela não é o real, mas real é a maneira como ela é construída pelos textos, ou seja, o mundo como construção e representação. Segundo Chartier, "o real assume assim um novo sentido: aquilo que é real, efetivamente, não é a realidade visada pelo texto, mas a própria maneira como ele a cria, na historicidade de sua produção e na intencionalidade de sua escrita".
Popular e erudito em Chartier
Chartier rechaça a idéia de que o popular seria o lugar da passividade, da dependência e da alienação, como mero receptáculo da cultura erudita. Posiciona-se contrário aos que pensam o erudito como o pólo da invenção e da criação intelectual. Para ele, o pressuposto deste tipo de análise é a idéia equivocada de que o texto contém um único significado, sendo portanto assimilado pela cultura popular.
Em lugar destas categorias, ele prefere pensar no processo de consumo cultural, que, por meio da apropriação, permite ao leitor construir representações e sentidos que não estão previstos no texto. Isso o leva a afirmar que o sentido da obra deve ser recuperado na multiplicidade de interpretações que ela suscita, dentre as quais a do autor é tão-somente mais uma. Ou seja, o texto não é o que é escrito, mas o que é lido.
Em suma, Chartier opõe-se a toda tentativa de estabelecer um nexo entre nível social e nível cultural (popular ou erudito), com base em categorias sociológicas. Para ele, o que define erudito e popular são as práticas. Quanto à cultura popular, torna-se assim impossível identificá-la a partir de textos (artefatos culturais) consumidos por ela. Na verdade, filiando-se ao princípio de circularidade, Chartier mostra que a oposição entre popular e erudito não tem mais sentido, em razão dos empréstimos e intercâmbios. O que interessa é o estudo das práticas, porque elas permitem a apropriação diferente dos materiais culturais.
Em lugar destas categorias, ele prefere pensar no processo de consumo cultural, que, por meio da apropriação, permite ao leitor construir representações e sentidos que não estão previstos no texto. Isso o leva a afirmar que o sentido da obra deve ser recuperado na multiplicidade de interpretações que ela suscita, dentre as quais a do autor é tão-somente mais uma. Ou seja, o texto não é o que é escrito, mas o que é lido.
Em suma, Chartier opõe-se a toda tentativa de estabelecer um nexo entre nível social e nível cultural (popular ou erudito), com base em categorias sociológicas. Para ele, o que define erudito e popular são as práticas. Quanto à cultura popular, torna-se assim impossível identificá-la a partir de textos (artefatos culturais) consumidos por ela. Na verdade, filiando-se ao princípio de circularidade, Chartier mostra que a oposição entre popular e erudito não tem mais sentido, em razão dos empréstimos e intercâmbios. O que interessa é o estudo das práticas, porque elas permitem a apropriação diferente dos materiais culturais.
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